Se sofro…

Se sofro, é da angústia ainda viva,
da solidão que umedece o peito,
areia clara arfando na carne,
que escreve e apaga a própria história.

Sofro do sol puxando o claro dia,
quando a noite ainda sangra escura,
e da lua guardiã de segredos,
falando aos pássaros do poente.

Há no tempo um antigo assovio,
um chamado que não sei seguir;
flores misturam promessas e fins
sobre campas que negam resposta.

Se sofro, é desse tempo sem taxa,
que passa e não deixa vestígios,
atravessa o corpo em casa vazia
e entrega aos ossos o silêncio.

Idílios mortos das festas primeiras,
balões vencidos no teto da mente,
açúcar preso aos dedos do tempo,
prova breve de termos vivido.

Risos sem noção do próprio fim,
velas sopradas com fé absoluta,
como se o desejo fosse lei
e o amanhã obediente matéria.

O chão retém confetes cansados,
sapatos curtos, corridas perdidas;
tudo era grande naquele tempo,
e nós pequenos diante do agora.

Houve um tempo sem nome da perda,
em que o corpo dançava sem peso,
e o amanhã ainda não doía
como palavra aprendida à força.

Antigos carnavais rasgavam o ar,
serpentinas feriam o céu,
o riso livre antes dos dias
cobrarem do corpo presença.

Máscaras guardavam segredos leves,
confetes dormiam nos cabelos,
o corpo era só ritmo e febre,
sem consciência do próprio cansaço.

Se sofro, não é só do que foi,
mas do que insiste em permanecer:
angústia fresca gravada no peito,
solidão que escreve e apaga.

Sofro do mundo que acorda cedo,
arrastando o dia em ruínas,
da noite que recusa seu fim
e da lua que sabe demais.

Se sofro, é porque houve fevereiro
em que a vida foi pura promessa,
em que a tristeza, desarmada,
aprendeu por instantes a dançar.

Se sofro, é porque houve noites
em que ninguém precisava ser inteiro,
em que a falta servia de abrigo
e a vida, embora breve, bastava.