Publicado em: 17 de dezembro de 2025
A defesa da tese de doutorado de Francineti Carvalho, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), robustece em linguagem acadêmica uma experiência construída no cotidiano dos rios, ilhas e comunidades ribeirinhas de Abaetetuba. Intitulada “CAPS Fluvial: saúde mental no território das águas no município de Abaetetuba – PA”, a pesquisa articula ciência, política pública e saberes tradicionais para analisar a constituição de um modelo inovador de cuidado em saúde mental voltado a populações historicamente invisibilizadas pelo Estado.
A tese foi apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Psicologia, na área de concentração Psicologia, Sociedade e Saúde, sob orientação da professora doutora Karol Veiga Cabral e coorientação da professora doutora Flávia Cristina Lemos. O trabalho parte da experiência concreta da pesquisadora como prefeita de Abaetetuba, implementando e gerindo o CAPS Fluvial, serviço vinculado à UBS Fluvial, criado como estratégia de cuidado territorializado e enfrentamento direto das desigualdades sociais, geográficas e do racismo ambiental que atravessam o território das águas.

Ao longo da pesquisa, Francineti analisa como a saúde mental, nos contextos ribeirinhos, é atravessada por fatores como distância física da cidade, custos de transporte, maré, insegurança nos deslocamentos, estigmas associados ao sofrimento psíquico e a descontinuidade dos tratamentos. Registros da rede de saúde indicavam um padrão recorrente de abandono do cuidado especializado por parte de usuários que não conseguiam manter vínculos com os serviços urbanos, realidade agravada pela pandemia de Covid-19 e pelo aumento dos quadros de ansiedade, depressão e angústia.
A investigação adota uma metodologia qualitativa de natureza cartográfica, acompanhando em processo a implementação do CAPS Fluvial no território abaetetubense. A autora utiliza diário de campo, observação participante, análise documental, entrevistas e rodas de conversa, compreendendo o território não apenas como espaço geográfico, mas como território existencial e vivo, conceito que dialoga com autores como Félix Guattari e Milton Santos. O “território das águas”, conforme definido na tese, expressa um modo de vida em que subjetividade, cultura, economia e natureza estão profundamente entrelaçadas.
Os dados analisados mostram que o CAPS Fluvial atua de forma integrada à UBS Fluvial, percorrendo ilhas e comunidades com uma equipe multiprofissional composta por psicóloga, médico, enfermeira e agentes comunitários de saúde, articulada a uma ampla rede intersetorial que envolve CRAS, CREAS, CAPS II, CAPS AD, escolas, lideranças comunitárias, movimentos sociais e projetos culturais. O cuidado se materializa em acolhimentos individuais, visitas domiciliares, rodas de conversa, ações educativas, apoio às escolas, mediação de conflitos e acompanhamento de gestantes, crianças, mulheres e idosos, adaptando-se às condições do território, muitas vezes em trapiches, sob árvores ou dentro da própria embarcação.
Entre agosto de 2022 e maio de 2025, o CAPS Fluvial de Abaetetuba percorreu 22 ilhas, realizou 444 atendimentos, 550 acolhimentos e 64 encaminhamentos para serviços especializados, evidenciando sua relevância na ampliação do acesso à saúde mental. A pesquisa aponta ainda que mulheres constituem o principal público do serviço, seguidas por crianças e adolescentes, geralmente levados por responsáveis do sexo feminino.
A tese destaca como potência central do CAPS Fluvial o deslocamento do cuidado do espaço institucional urbano para o território onde as pessoas vivem, promovendo equidade de acesso e resgate de vínculos sociais fragilizados pelo adoecimento psíquico. O serviço reconhece e dialoga com saberes tradicionais de cura, não como ornamento cultural, mas como dimensão ética do cuidado, ao mesmo tempo em que alerta para o risco de perda desses conhecimentos entre as novas gerações.

Na avaliação da autora, o projeto cumpriu seu objetivo de oferecer “escuta e cuidado em liberdade” às populações ribeirinhas, fortalecendo a atenção básica, ampliando a rede de proteção da infância e adolescência e inspirando a criação de novos serviços, como o atendimento itinerante em saúde mental infantojuvenil. A pesquisa também apresenta uma proposta concreta de política pública de saúde mental para o território das águas, ressaltando, contudo, que sua ampliação e sustentabilidade dependem de financiamento adequado e do compromisso dos três níveis de governo.
Ao comentar a conquista acadêmica, Francineti Carvalho sintetizou o sentido político e social do percurso ao afirmar que “fazer Ciência na Amazônia precisa ser, também, um ato de compromisso com o povo da nossa região”, compromisso que envolve cuidado, escuta e a construção de políticas públicas alinhadas à realidade de quem vive nos rios e ilhas. Segundo ela, o CAPS Fluvial de Abaetetuba extrapolou os limites geográficos do território ao chegar à universidade como expressão desse compromisso coletivo.
A autora também ressaltou que recebe o título “com orgulho, responsabilidade e a certeza de que o conhecimento só cumpre seu papel quando retorna em forma de valorização, cuidado e compromisso com as pessoas”, destacando o apoio do Programa de Pós-Graduação, da orientadora, da coorientadora, da equipe e dos usuários do CAPS Fluvial de Abaetetuba.














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