Publicado em: 11 de dezembro de 2025
Em Salvaterra, comunidades quilombolas aprenderam a registrar, em papel e memória, os caminhos até os roçados, matas, igarapés, lugares sagrados e áreas de conflito com o agronegócio. O processo coletivo em torno da cartografia, construído desde 2017 a partir do projeto Indicadores Socioambientais, da Universidade Federal do Pará, além de ferramenta de gestão territorial, reivindicação de direitos, preservação socioambiental e memória coletiva dos povos, pôs a ancestralidade de mãos dadas com a ciência.
“O mapa é a expressão mais fiel possível do território, porque é produzido por quem vive nele”, explica o professor doutor Otávio do Canto, geógrafo coordenador metodológico do projeto, que é membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará.

As marcações indicadas pelos moradores são feitas diretamente sobre o mapa, com etiquetas coloridas e anotações manuais. Ao fim da oficina, esse material é fotografado e levado pelos pesquisadores ao laboratório do Núcleo de Meio Ambiente da universidade (NUMA-UFPA), onde as informações são digitalizadas e organizadas na primeira versão do mapa. Depois, o grupo de pesquisadores retorna à comunidade duas ou três vezes para refinar os dados, garantindo que cada elemento representado seja reconhecido por quem vive ali.
Em Salvaterra, os encontros aconteciam nas associações comunitárias, escolas e até sob a sombra das árvores. Cada grupo indicou os pontos que compõem seus territórios, como igarapés, locais de pesca e caça, roças, áreas de coleta de frutos, caminhos usados pelos mais velhos e pontos de ameaça, como cercas de fazendas e de avanço das monoculturas.

“Nós unimos a organização comunitária com os instrumentos científicos para produzir uma cartografia. O resultado é um instrumento inovador para a comunidade, porque ela passa a ter um registro de sua realidade, de seus conflitos e conquistas. O nosso projeto trabalha com três palavras fundamentais: ciência, inovação e empoderamento social”, comenta Otávio do Canto.

Os mapas são impressos em grandes formatos, geralmente o A1, e também disponibilizados em meio digital, com acesso gratuito pelas comunidades.

“Algumas áreas de pesca e extrativismo que antes eram livres hoje estão cercadas. Para entrar, temos que pedir permissão para quem se diz dono. Então, com o mapa, a gente prova que usava aquele espaço muito antes. O mapa é uma ferramenta para contrapor aquilo que os fazendeiros dizem. Eles afirmam que a área é deles, mas nós mostramos, a partir do mapa e das vivências dos mais velhos, que sempre estivemos ali”, explica Deco Souza, professor e liderança quilombola da comunidade Deus Ajude, em Salvaterra.
Dados da plataforma MapBiomas apontam que as áreas de agricultura e pastagem aumentaram 417% na Amazônia desde 1985. Os quilombos de Salvaterra estão entre as muitas comunidades tradicionais ameaçadas pela expansão do agro.
O geólogo Norbert Fenzl, também professor da UFPA e coordenador do projeto, lembra que, embora não substituam mapas oficiais, esses registros têm valor concreto. “Eles são úteis. Quando uma grande empresa compra um território e ocupa uma parte grande da população, como é que essa população prova que vive ali há tanto tempo? Eles não têm documentação. Então, essa cartografia dá a eles um instrumento importante para se defender”, afirma.
O professor Otávio do Canto relata que um dos mapas feitos em Deus Ajude foi utilizado em processo judicial contra produtores de arroz que avançaram sobre terras quilombolas. “O mapa se torna um instrumento de prova, mas também de educação. Quando um grupo vai a Brasília mostrar seu mapa, não é a voz de um pesquisador, é a voz de uma coletividade dizendo: ‘é assim que vivemos, é assim que cuidamos’”.
A experiência em Salvaterra revela como ciência e saberes tradicionais podem se complementar em tempos de crise climática e pressão sobre os territórios. Os mapas feitos pelos quilombolas não se limitam a coordenadas geográficas: são registros de vida, memória e das práticas cotidianas, ferramentas que convertem o invisível, a história oral, os saberes de pesca e de plantio, em visível e reivindicável.









Comentários