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Dia 10 de dezembro é dia de Clarice Lispector, uma mulher sob um vendaval disfarçado de silêncio, uma tempestade que se aninhava nas dobras da linguagem, rasgando o véu do cotidiano para expor o abismo pulsante da existência. Nasceu nesta data, em 1920, na Ucrânia gelada e sangrenta, fugindo com a família dos pogroms que devoravam seu povo judeu como feras famintas. Aportou no Brasil ainda bebê, guardando nos olhos um écran de horrores que moldaria sua alma em lâminas afiadas. Recife, depois o Rio: cidades que a acolheram como mães adotivas, embora jamais conseguissem domar o fogo selvagem que ardia em seu peito.

Sua prosa cortante nunca foi mera tinta no papel; mas um sismo, um terremoto que abalava as fundações da alma humana. Em Perto do Coração Selvagem, escrito aos 23 anos, ela surgiu como um grito primal, tecendo monólogos interiores que reverberavam Joyce e Woolf, mas com uma fúria brasileira, tropical, devoradora. Suas palavras não apenas descreviam: invadiam. Penetravam a carne do leitor, forçando-o a confrontar o vazio, o desejo, a solidão que lateja como ferida aberta. “Eu sou um ser vivo”, ela escrevia, mas era mais: era o próprio pulsar da vida, cru, impiedoso, sem misericórdia.

Órfã aos 9 anos de mãe e aos 14 de pai; casada depois com um diplomata que a levou por exílios europeus e americanos; mãe de dois filhos em meio a depressões que a roíam por dentro. Separou-se, e carregou queimaduras extensas após um incêndio acidental causado por um cigarro, chamas que devoraram parte de sua mão direita, sua ferramenta de criação, deixando cicatrizes que ecoavam as da alma. E veio o câncer, ladrão silencioso, que a levou em 1977, um dia antes de completar 57 anos, como se o destino zombasse de sua busca incessante pelo sentido.

Em A Paixão Segundo G.H. ela nos arrasta para o inferno de uma barata esmagada, num encontro místico com o nojo primordial, onde o eu se dissolve em êxtase e terror. A Hora da Estrela, sua despedida, é um punhal no coração: Macabéa, a nordestina invisível, morrendo atropelada enquanto Clarice ri e chora por trás do narrador, expondo a miséria brasileira, a fome de ser, a crueldade do mundo. Suas crônicas? Facadas poéticas no Jornal do Brasil, onde o trivial se transfigura em epifania e o banal se eleva a revelação divina.

Clarice era intensa como um furacão devorando almas desertas, mística como uma profetisa errante, feminina em uma era que sufocava vozes de mulheres. Não escrevia para agradar; escrevia para sobreviver, para devorar o mistério da existência e devolvê-lo ao mundo transformado em beleza atroz. Seu legado? Um incêndio eterno na literatura, incendiando gerações, de Moser às adaptações cinematográficas, provando que, no caos da vida, a palavra pode ser a única salvação ou a derradeira condenação.

Se sua alma ainda vagueia, é nas páginas que deixou, sussurrando: “Viva intensamente, ou pereça no silêncio.”

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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