Publicado em: 24 de novembro de 2025
Antes de apresentar o diálogo hipotético de Dworkin com seus leitores sobre a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro, é necessário recordar que, ao longo de toda a sua obra, Dworkin tratou a liberdade individual como um trunfo moral contra qualquer forma de autoritarismo. Esse valor, para ele, era mais que conceito jurídico. Era uma centelha ética, uma pequena chama que, se protegida, ilumina a arquitetura inteira da democracia.
Dworkin rejeitou com firmeza a ideia de que o Estado pudesse restringir liberdades por razões utilitárias, conveniências políticas ou humores majoritários. Cada pessoa, dizia ele, deve ser tratada com igual respeito e consideração. Por isso não poderia admitir que a defesa da ordem democrática fosse convertida subterfúgio para perseguições ou arbitrariedades. A prisão preventiva, para ser compatível com a integridade, não pode brotar de animosidades públicas, nem de cálculos estratégicos, nem de juízos morais sobre a personalidade do investigado. Ela deverá ser fundamentada em demonstração rigorosa e transparente de que a liberdade individual, embora seja o centro luminoso da democracia brasileira, não pode ser utilizada para corroer as condições institucionais que a tornam possível. Essa cautela dworkiniana contra o autoritarismo, que exige justificações públicas e moralmente sólidas, é precisamente o que impede que o argumento democrático degenere numa máscara elegante para práticas antidemocráticas, mesmo quando dirigido contra figuras de grande peso político.
O diálogo de Dworkin
Quando me pediram que refletisse sobre a prisão preventiva do ex-presidente Jair Bolsonaro, motivada pela tentativa deliberada de violação da tornozeleira eletrônica durante investigação sobre ataques ao Estado Democrático de Direito, reconheci de imediato um hard case. Assim defini casos dessa natureza em Levando os Direitos a Sério e em O Império do Direito, onde o intérprete não encontra abrigo em respostas mecânicas. Ao contrário, deve navegar entre interpretações possíveis da Constituição, cada qual reivindicando coerência com a prática jurídica brasileira, à luz moral dos princípios políticos da comunidade. É nesse terreno instável que Hércules, meu juiz ideal, trabalha com coragem, elegância e responsabilidade.
Objeções que exigem resposta interpretativa
A decretação da prisão preventiva enfrenta objeções sérias. A crítica liberal clássica teme que a presunção de inocência seja violada, reacendendo debates antigos que Rawls antecipara em Uma Teoria da Justiça. A crítica positivista de orientação hartiana, inspirada em O Conceito de Direito, afirma que a tentativa de violar a tornozeleira seria um fato irrelevante para justificar medida tão grave. A crítica republicana, por sua vez, enxerga aí um risco de expansão judicial sobre o campo político, como sugere Jeremy Waldron em Direito e Discordância. Nenhuma dessas críticas é vazia, e todas exigem enfrentamento cuidadoso à luz da integridade. No romance em cadeia do direito, como expliquei em O Império do Direito, cada decisão se insere numa narrativa contínua que precisa honrar o que já foi escrito e preparar de forma responsável os capítulos futuros.
Diálogo com Karl Loewenstein
Quero acrescentar aqui a interlocução com Karl Loewenstein, que observou a democracia como um organismo vivo, sujeito a doenças internas que podem destruí-la a partir do centro. Sua teoria da democracia militante parte da constatação de que regimes constitucionais podem ser corrompidos por aqueles que, beneficiando-se da liberdade, usam-na para corroer suas próprias bases. Sempre entendi a democracia não como simples método de formação de maiorias, mas como comunidade de princípios que trata cada cidadão como igual em dignidade. No entanto, Loewenstein nos lembra que essa comunidade de princípios só respira porque existe um corpo institucional que a sustenta. Se esse corpo é sistematicamente agredido, a própria integridade que defendo perde o terreno normativo que precisa para sobreviver.
Não rejeito sua premissa de que democracias devem se proteger. Divergimos apenas quanto ao fundamento moral dessa proteção. Para Loewenstein, preservar o organismo democrático é um imperativo de sobrevivência. Para mim, essa preservação só é legítima quando ancorada em princípios que dignificam o exercício do poder. A democracia não vale apenas porque se mantém viva, mas porque permanece justa. Porém reconheço que, sem o mínimo de estabilidade institucional, não há cenário possível para a interpretação moral do direito. A militância democrática que Loewenstein propõe não é, quando corretamente compreendida, uma suspensão dos valores que defendo, mas a sua própria continuidade. Defender a democracia dos que a instrumentalizam é proteger a integridade que sustenta os direitos e a dignidade política dos cidadãos. É nesse ponto que nossos projetos convergem.
O romance constitucional brasileiro
A Constituição de 1988 nasce das ruínas éticas e institucionais deixadas pela ditadura. Seu texto carrega esse trauma originário. É promessa de liberdade e dignidade, mas também pacto de vigilância contra ameaças que busquem subverter a ordem democrática. A prática interpretativa do STF, no Inquérito 4.439, na ADPF 572 e nos julgamentos dos atos de 8 de janeiro de 2023, consolidou um entendimento: a democracia brasileira tem um direito moral à sobrevivência institucional. Esse constitucionalismo ressoa com o núcleo de O Império do Direito, que vê na integridade o elo que mantém a comunidade política unida pela responsabilidade e pela coerência.
A defesa da liberdade individual em Dworkin
Em Justiça para Ouriços escrevi que os valores morais como liberdade, igualdade e dignidade respiram o mesmo ar. São partes de um mesmo sistema, inseparáveis em sua lógica interna. A presunção de inocência, como apresentei em Uma Questão de Princípio, expressa a renúncia do Estado à posse moral do indivíduo. Mas a liberdade exige, para florescer, instituições sólidas. Esse debate ecoa minha divergência com Joseph Raz em A Moralidade da Liberdade. Nesse caso específico, é a tensão entre liberdade individual e proteção das condições políticas da liberdade futura que se coloca no centro da análise.
Princípios constitucionais em jogo
O caso convoca princípios de altíssima densidade normativa. A liberdade individual inscrita no artigo 5º. A presunção de inocência do inciso LVII. O princípio republicano da responsabilidade pública, que recorda que governantes respondem moralmente à comunidade, como discuti em A Lei da Liberdade. A separação dos poderes, fundamento da crítica ao decisionismo. A autodefesa da ordem democrática, prevista no artigo 34, VII e articulada conceitualmente em É Possível a Democracia Aqui. O princípio de proporcionalidade e necessidade do artigo 312 do Código de Processo Penal, coerente com a concepção de restrição de direitos baseada em razões públicas, como defendi em Justiça para Ouriços. E claro, a integridade interpretativa, que constitui o coração de O Império do Direito.
Critério de peso e integridade
A tentativa de burlar a tornozeleira, vista isoladamente, poderia parecer trivial. Mas quando inscrita no contexto de liderança de movimentos que ameaçaram as instituições e recusa reiterada em aceitar a legitimidade eleitoral, o gesto ganha densidade constitucional. A integridade exige que a decisão judicial dialogue com o romance constitucional brasileiro, e não o ignore.
Como julgaria o juiz Hércules?
Decido este caso consciente de que nenhum julgamento verdadeiramente importante é moralmente indolor. Neste caso trágico, o réu foi ao encontro do destino do qual, paradoxalmente, se esforça por escapar. A Constituição brasileira, lida com integridade, narra a trajetória de um povo que, tendo sido despojado de sua liberdade, jurou nunca mais renunciar a ela. Essa promessa só pode ser honrada se fortalecermos a democracia que a sustenta.
Dois princípios centrais parecem disputar neste caso: de um lado a liberdade individual, reforçada pela presunção de inocência; de outro, a autodefesa da ordem democrática, sem a qual nenhuma liberdade sobrevive. O investigado, ex-presidente da República, tentou burlar a tornozeleira eletrônica que limitava sua locomoção por decisão judicial. O gesto, isolado, talvez fosse menor. Inserido no contexto fático que envolve sua liderança em movimentos de contestação institucional extremos, revela risco concreto à ordem pública democrática e à instrução criminal.
Com fundamento no artigo 312 do Código de Processo Penal, decreto a prisão preventiva do investigado Jair Messias Bolsonaro. A medida é necessária, adequada e proporcional ao risco institucional demonstrado. Esta decisão não celebra o poder do Estado, mas a fragilidade da democracia, que desafia do poder judiciário a coragem de protegê-la. É como decido, interpretando o direito como integridade.
Para terminar
Digo que a prisão preventiva, medida extrema aqui analisada, não se resume a vingança política nem a triunfo autoritário do Judiciário. Ela é um momento trágico do enredo do romance constitucional brasileiro, no qual valores igualmente nobres disputam para subsistir. Como escrevi em Justiça para Ouriços, todos os valores morais, dignidade, liberdade, igualdade e democracia, pertencem ao mesmo sistema constelar. Nenhum líder, por mais carismático que seja, pode se colocar acima dessa promessa coletiva.



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