Publicado em: 17 de novembro de 2025
“Cuide-se bem
Perigos há por toda a parte
E é bem delicado viver
De uma forma ou de outra
É uma arte, como tudo”
O trecho é parte da composição “Cuide-se bem”, de Guilherme Arantes, que pode ser uma das muitas chaves de interpretação do filme “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho, premiado com melhor direção e ator (Wagner Moura) na última edição Festival de Cannes, além de outros prêmios relevantes que continua recebendo.
O filme é mosaico de espelhos, citações e homenagens metalinguísticas que revelam o amor do cineasta pernambucano pela sétima arte, mesmo quando a temática e a estética utilizada apresentam um Brasil violento, subdesenvolvido e periférico. Uma barbárie nos trópicos, que definitivamente não é para amadores, ainda que narre os acontecimentos numa linguagem pop, que remete ao filme policial e ambientação no carnaval de 1977, na cidade de Recife.
No prólogo, imagens em preto e branco da cultura popular dos anos 70, com referências a telenovelas, filmes e outros signos carregados de memória afetiva.
Em “O Agente Secreto”, a violência está em toda parte. A começar pela primeira sequência em que a embriaguez oficial do calendário carnavalesco ignora um cadáver fétido, há dias exposto num posto de gasolina à beira da estrada e os policiais rodoviários a tentar extorquir a quem deveriam proteger.
Em pleno sol escaldante que joga na cara o malogro de um suposto milagre econômico, falência dos projetos políticos da era Ernesto Geisel, o filme narra as relações promíscuas entre empresas estatais, apropriações indevidas e contaminação criminosa nas forças policiais, inseridas em conexões com realidade atual, como o episódio trágico do filho da empregada atropelado por negligência da patroa e a terceirização das encomendas de assassinatos de desafetos e inimigos declarados.
A construção narrativa vai aos poucos dispondo o tempo presente e o tempo passado, convergidos com as velhas e as novas formas de silenciamento. Se antes a censura estatal era oficial, agora são os novos procedimentos que apontam o que deve ou não deve ser divulgado, a exemplo da pesquisa feita por estudantes universitárias a partir de fitas cassete com gravações relevantes sobre o que aconteceu como Marcelo (ou Armando) nos anos 1970, em plena ditadura militar no Brasil.
Aqui, a cidade de Recife é deslocada para outro tempo, com direção de arte, figurino, fotografia e ambientações que dão conta da proposta de roteiro que apresenta a capital pernambucana como espaço de conflitos, contradições e pulsão das manifestações da cultura popular.
A formação de cinéfilo de Kleber Mendonça Filho faz reverência a “Tubarão”, de Steven Spelberg, que faz conexão sobre o perigo de ataque nas praias de Recife; filmes de terror (“A Profecia”, de Richard Donner); o cartaz do filme “Dona Flor e seus dois maridos”, de Bruno Barreto; e várias cenas rápidas que apontam o cinema como a grande arte das massas no século XX.
Os primeiros sinais da decadência dos cinemas de rua, a precariedade dos equipamentos, funcionários desvalorizados e a grande sala escura para os prazeres da carne. Está tudo lá, personificado pelo ator Carlos Francisco que interpreta o projecionista do cinema São Luiz.
A tentativa de evitar apagamentos pessoais e históricos, muito bem esboçada nas cenas finais, acende o sinal de alerta de que processos de esquecimento podem ser fatais para as novas gerações no que se refere à cultura, a política, manipulação das informações e o desserviço prestado pelo sensacionalismo e regimes de exceção.
Em “O Agente Secreto”, relatos com base em fatos reais e lendas urbanas se cruzam para compor um cinema que dialoga com o passado e o presente, identidade e resistência numa obra cheia de camadas interpretativas, vibrante e essencial para o cinema brasileiro contemporâneo.











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