0
 

Recentemente li livro “Eu que não conheci os homens”, um romance de Jacqueline Harpman  (1929-2012), uma escritora e psicanalista belga de origem judaica,  marcada na juventude pela invasão nazista do país.  Após 30 anos de publicação, o livro passou a ser recomendado por comunidades literárias nas redes sociais, nos Estados Unidos, e foi uma das indicações do Clube do livro “Atlas do Feminino”, conduzido por Marcela Ceribelli.
O enredo é uma grande metáfora de prisões patriarcais, do enigma da vida e da própria feminilidade, bem como reflexões sobre liberdade, crise planetária e a sociabilidade humana. Trata-se de uma distopia, aparentemente de um mundo pós apocalíptico, em que 39 mulheres e uma menina se encontram trancadas em uma cela, monitoradas por homens com seus chicotes, que não interagem com elas, apenas as vigiam e mantem as regras locais: não se tocar, não atentar contra si ou outra, entregar o básico e mínimo para alimentação e higiene. Sem compreensão de como e o porquê estavam ali, um dia, após tocar uma sirene, os homens fogem e elas conseguem sair, tendo que se deparar com um novo cenário, no meio do deserto.
Contado a partir da narrativa de uma menina, sem lembranças de qualquer representação do mundo anterior, nem mesmo de afetos familiares, é possível acompanhar seu crescimento, em meio as descobertas, transmissões, relações e saídas encontradas, com elementos das tradições ancestrais ou das marcas do feminino ocidental sendo apresentadas por elas, mesmo que no diálogo ou como saídas subjetivas frente aquilo que invade, como a morte.
Sem pretensões de análise da obra, e de fato não farei nada disso, queria apenas pensar sobre a pergunta que o próprio título do livro me trouxe: como eu seria se vivesse em um mundo que eu não conhecesse os homens? E quando faço essa pergunta, não quero com isso dizer que odeio homens, até amo uns (perdoem a ironia), mas estou me referindo aos constructos da masculinidade que nos sociabilizam em polos assimétricos. Então, só para ser direta, quando me referir aos homens neste texto, não estarei falando de pessoas, de fulano ou cicrano, mas de um sistema, o patriarcado, que nos subjetiva e que se organiza de forma a instituir relações de poder, institucionais e sociais.
Quando bell hooks fala do feminismo, ela reforça que a luta não é a manutenção da dicotomia rival entre homens e mulheres, até reconhecendo a importância relacional e o como gostaríamos de relações simétricas e saudáveis, mas contra um sistema sexista. É deste sistema que iremos abordar e falar aqui, tal como acredito que a autora buscou fazer em seu livro.
A personagem, que é uma “pequena” sem nome (e isso já seria um aspecto interpretativo que poderia gerar um tantão de reflexões), em um certo momento resolve sair e andar, desbravar para encontrar alguma resposta. Para além das analogias metafóricas e de associações que eu possivelmente faria em relação ao enigma da vida, o caminho da análise pessoal, associação com mitologias gregas, queria me propor ir para o concreto mesmo. Conversando com meu marido, constatei que eu vivo com medo. Não me garanto ir andando à noite sozinha da minha casa até a escola dos meus filhos, que é aqui perto. A ideia de que serei interpelada por um homem violento, mesmo que isso não aconteça, já está dentro de mim. E o pior, está ao lado de estatísticas.
O que seria coragem e o que seria imprudência? O que um mundo com homens nos retira? O direito às ruas é um desses aspectos, mas transcende o ir e vir, para se associar a esse trabalho psíquico que é a postura defensiva, que remete a planos mentais, mas também que nos cercea da ousadia, da curiosidade, do improviso, do fazer o que der vontade, da autoestima para decidir e bancar decisões em relação ao movimento.
Depois de muito pensar sobre isso, eis que no livro, a personagem não tinha espelho. Algo que parece tão simples, tem muitos efeitos. Quem tenta explicar para ela sobre enfeitar-se e sobre beleza é uma mulher com suas memórias da vida antes da prisão. Ainda assim, nada parece fazer sentido, pois apesar de tentar entender ou alcançar, os sentidos permanecem como algo distante.
Nesse processo fiquei pensando na minha relação com espelho material. O quanto a métrica do corpo idealizado e agora, que já estou na escala dos quarenta (41 anos), as questões das marcas ou aparições do envelhecimento, me atravessam, apesar de todo amparo teórico e discursivo que me muno para enfrentamentos pessoais e coletivos. Será que em um mundo sem homens, a gordura na barriga ou as rugas na cara seriam uma questão?
Conversando com uma colega que fiz no congresso em Manaus (Otávia, uma querida), falávamos dessa corrida estética do corpo magro, das cirurgias que chegam até na vulva e vagina, de mulheres que não sabiam sequer significar o que gostam, e ela me soltou uma frase, meio óbvia e que estou cansada de saber, mas que naquele momento fez um sentido de me deixar ainda mais pensativa: “é desta forma que matam as mulheres” e ainda indagou: “é ou não é uma distopia?”.
Não me aprofundarei na pauta do sexo e sexualidade, mas o livro aborda até mesmo a relação com corpo e os relacionamentos amorosos, já que para as antigas, quase todas estabeleceram pares, como se essa fosse uma condição de existência. Como seriam nossas relações amorosas e formas de amar se o mundo não conhecesse os homens?
Para pequena, afastada dos ditames da maternidade compulsória, a própria relação com útero não era uma questão. Enquanto para nós menstruar ou parar de menstruar (como na menopausa) nos associa uma ideia de valor pela fertilidade e de produtividade, para pequena era apenas um detalhe. E se meu útero não tivesse esse valor simbólico de capital matrimonial? E se meu corpo fosse um corpo para me sustentar a viver e não um corpo regulado para cultura masculina? Quem eu seria?
Fiquei pensando na “pequena” e em como eu já fui uma criança, antes das prisões e chicotes que passaram a nos moldar e internalizar como devemos ser, vivendo a partir desse referencial. No livro, as mulheres por necessidade para sobrevivência vão desenvolvendo habilidades até então tidas como masculinas. Especialmente a pequena que vê em tudo uma possibilidade paro novo, por não ter presilhas no passado. Que habilidades eu poderia ter desenvolvido? Será que eu teria gostos diferentes?
E, em meio ao descampado, o livro nos mostra também uma forma de vida coletiva entre mulheres, onde é possível encontrar respeito e solidariedade aos corpos com suas diferenças de idade, impactando nas escolhas coletivas, independente das relações que envolvem menos afeto ou afinidade. Como mulheres se relacionariam se não conhecessem os homens e a cultura que motiva para rivalidade?
Não estaríamos nós em prisões com chicotes que nos lembram como não podemos legislar sobre nossos corpos, afetos, relações, caminhos e toques?
Brinquei de fazer um exercício, igual a protagonista, de me isolar e ficar tendo arrebatamentos com os pensamentos de quem eu seria em um mundo em que não conheci os homens. O problema é que fui interrompida e sem o direito da solidão, parei por ali. (Uma pesquisa recente, afirmou que mulheres mães são interrompidas a cada 3 minutos, mais de 400 vezes ao dia).
Eu não sei quem eu seria em um mundo que eu não conhecesse os homens, e vocês?

Bárbara Araújo Sordi

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

O Círio e o Mosaico das Diferentes Paisagens.

Anterior

Lisboa celebrou o Círio de Nazaré

Próximo

Você pode gostar

Comentários