0
 


 
Uma pesquisa realizada pelo Bolavip Brasil e pela Research Without Barriers, ocorrida em março de 2025, ouvindo torcedores brasileiros com 18 anos ou mais, revelou que, dos 2.033 brasileiros ouvidos, 47% acreditam que teriam sido jogadores profissionais de futebol, mas seguiram outras carreiras. Entre estes, 9% afirmam que seriam melhores que Neymar e 12% que superariam Vinícius Júnior.
Popularmente, algumas pessoas brincariam interpretando essa pesquisa como a alta “autoestima de homens héteros” (e o dito-popular não está errado), mas o que essa expressão irônica quer nos dizer? 
De forma simplificada e, talvez, meio óbvia: homens se validam, se autorizam e se sentem muito capacitados, estando muito vinculados a imagem do sucesso, do ganho.
Além disso, é preciso dizer que este fato está diretamente relacionado ao nosso processo histórico e que também se desdobra nas dificuldades masculinas em ouvir “não”, fato que também desdobra em inúmeros tipos de violência, inclusive entre eles, que acabam resolvendo as questões pela via da agressividade.
Estou, com isso, afirmando que a lógica que faz com que homens sintam que poderiam ser o Neymar é a mesma que mantém a violência contra nós, mulheres.
E aqui abro um parêntese: sim, o Neymar também é uma figura bem representativa do modelo hegemônico da masculinidade, não à toa sendo citado com destaque na pesquisa.
(Só lembrando as leitoras e leitores os feitos de Neymar: sonegação de impostos e corrupção, brotheragem masculina que apoia e ajuda amigos estupradores, acusação de estupro, traições públicas, inclusive com esposa grávida, e ostentação que reforçam a imagem do macho bem-sucedido: carrão, festas, mulheres, dinheiro esbanjando).
Mas, Bárbara, qual a relação entre os homens, de forma geral, se identificarem com serem vencedores, com sucesso, ou em se considerarem talentosos com a Cultura do estupro?
Tudo. E eu explico para você.
A invasão colonial firmou alguns pilares identificatórios nas bases da sociedade hegemônica, dentre eles a desigualdade de gênero. Nessa desigualdade, os homens (especialmente os brancos) passaram a ser o modelo de referência: aqueles com direitos, que dominam e tem posses – Terras, leis, poder. O corpo da mulher também passa a ser um território, uma propriedade a ser descoberto, invadido e apossado, comercializado e valorizado como mercadoria.
Neste processo de relações de poder, homens passaram a ser subjetivados pela disputa territorial. Em outras palavras, o destaque ou sucesso territorial passou a ser a garantia de validação e reconhecimento entre pares. Logo, homens se tornaram importantes entre si, pois é entre eles que ocorrem os jogos relacionais, de formação e de reconhecimentos identitários, onde precisam reiteradamente se reafirmar em provas infindáveis e onde irão receber recompensas e validações afetivo-egóicas.
Junto a isso, a teia relacional faz com que pouco possam se frustrar, afinal recebem desde a infância privilégios, facilidades e paparicos, com baixas responsabilizações, seja em atividades a serem desenvolvidas, seja nas consequências de suas ações.
Neste processo, há ideais de perfeições sendo introjetados, fazendo com que muitos sejam beneficiados apesar de sua mediocridade. Logo, numa identificação de grandeza, quase que delirante, a cultura também valida que esses homens possam se desenvolver a partir de marcadores do sucesso, o que pode ter efeitos positivos para eles, na autoestima, mas também nas relações, como nas manifestações de baixa tolerância a frustração e dificuldades em mediar conflitos.
Vamos aos exemplos.
Quanto os benefícios da autoestima delirante:  Uma pesquisa da Hewlett-Packard, frequentemente citada em debates de gênero no mercado de trabalho, revelou que mulheres se candidatam somente quando acreditam atender a 100% das qualificações, ao passo que homens o fazem quando cumprem cerca de 60%. Essa disparidade não está ligada a falta de competência, mas a construções sociais e culturais que incutem nas mulheres a exigência de provar constantemente sua capacidade, reforçando padrões de autocrítica mais rigorosos e, consequentemente, afetando suas vidas profissionais e os espaços ocupados por elas.
Agora vamos falar da dificuldade em receber não e a relação com a cultura do estupro: Em Belém do São Francisco (PE), uma criança-menina de 11 anos de idade, recusou um pedido de “ficar” feito por um menino de sua turma. Por sua decisão, foi interceptada por cinco colegas — quatro meninos e uma menina — e brutalmente espancada, entrando na lista de crianças mortas por feminicídio.
Sabemos que para as meninas e mulheres, dizer “não” pode significar enfrentar riscos reais, uma vez que dizer meninos e homens terão que lidar com um rompimento nessa lógica identitária de ganhos.
Essa masculinidade que foi produzida como um projeto político, e que mantém este projeto em curso, não reconhece limites, transforma caprichos e vontades em imposição e frustrações em agressões criminosas.  O corpo das meninas e mulheres se tornam um veículo para dominação e poder.
Nosso “não” chega como uma afronta à virilidade, fazendo com que o homem sinta que precisa provar, resgatar e reivindicar a virilidade perdida, tanto pela inaptidão de se frustrar, como pela imagem que precisa manter entre pares. Além disso, as violências contra nós, como neste caso, só atestam o fato já disso acima,  de que nosso corpo é objetificado, pois são eles que se sentem e assumem o direito de legislar e decidir sobre nós, e mais que isso: invadir, manipular, machucar, desterritorializar o que nos pertence. 
Por isso, sempre que leio manchetes como essas – do como os homens brasileiros se acham maravilhosos – ao invés de rir e debochar – embora eu também ache esse recurso importante – eu me preocupo, porque sei que é mais grave do que parece e porque sei que se desdobra em violências contra nós.
Por isso, urge políticas educativas e legais em letramento de gênero, com enfoque nas desconstruções de performances e emocionalidades da masculinidade hegemônica. 
Nossos colonizadores (os europeus) que não deveriam ser exemplo para nós, já demonstram estar tomando medidas em relação a pedagogia afetiva masculina, isso porque foram realizadas pesquisas que demonstraram que mais da metade dos jovens entre 11 e 19 anos já tiveram contato com comentários misóginos. Por conta disto,  a partir de 2026, escolas britânicas deverão incluir no currículo aulas obrigatórias voltadas ao enfrentamento da misoginia, em resposta ao crescimento alarmante de discursos de ódio contra mulheres, sobretudo em ambientes digitais.
A proposta do governo verificou a importância de criação de ferramentas para o pensamento crítico que possibilitem que os/as adolescentes identifiquem e questionem conteúdos nocivos, como narrativas de grupos “incel”, a banalização da violência sexual em pornografia e a masculinidade tóxica propagada nas redes sociais.
O fato é que falar de letramento de gênero nas escolas pode ser uma via de prevenção e reflexão para desconstrução.
Essa é a esperança em algumas destas colunas-denúncias, pedagogicamente educativas, que tento lançar nas redes, torcendo por algum efeito na microfísica.
Ao identificar, nomear, mapear e refletir criticamente sobre os fenômenos, podemos criar estratégias de enfrentamentos e resistências.
E fica registrada aqui minha esperança militante, quase como um pedido e manifesto: é criar nossas/novas saídas legais e inventivas para descolonizações das masculinidades e isso só se faz possível descentralizando os privilégios de meninos e sim, quebrando a fantasia delirante de autoestima de que são super-homens e que tudo podem.  Os meninos precisam aprender a ouvir mais “Nãos” e as meninas precisam aprender a dizer mais “Não” para os outros e “sim” para si.  E, entendam, tudo isso que estou falando é buscando tentar minimizar desigualdades, bem distante da falácia de que educação de gênero visa inverter relações de poder.

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

Bicha petista e luxo do futuro

Anterior

Os vereadores e a gestão urbana: Um poder esquecido

Próximo

Você pode gostar

Comentários