Publicado em: 16 de setembro de 2025
Rodeando o Igarapé das Almas, o Bairro do Umarizal era o bairro onde tudo acontecia. Um morador, porém, se destacou por sua inventividade e popularidade. Mestre Martinho, como todos conheciam em sua época, Martinho era um homem preto alto e forte, carismático e agregador.
Não havia quem não o conhecesse ou quem dele não gostasse dentre os moradores do Umarizal. Muitas histórias que ele protagonizou permanecem vivas ainda hoje, no imaginário popular de Belém, resultantes dos inúmeros e saudosos relatos, passados de geração, em geração por aqueles que tiveram o prazer de conviver com ele.
Vale a inusitada comparação de Mestre Martinho com outro saudoso negro, detentor do mesmo espírito musical dessa época: o grande compositor David Miguel, sambista, compositor, cantor e amigo de gerações e milhares de pessoas que tiveram a oportunidade de com ele conviver. Quem conheceu David Miguel em seu eterno Umarizal e sua querida “Agremiação Carnavalesca Quem São Eles” pode imaginar um pouco quem foi Mestre Martinho.
Morador do Umarizal, Mestre Martinho era quem organizava quase todas festas e manifestações folclóricas desse tão vigoroso bairro. Nascido na cidade de Óbidos, interior do Estado do Pará, quase em confluência com o Estado do Amazonas, no dia 12 de outubro de 1835, Martinho foi criado em Belém.
Conforme indica Vicente Salles, ainda pequeno, aos 12 anos de idade, mais precisamente no dia 18 de agosto de 1848, Martinho promoveu sua primeira festa em Belém. Uma ladainha embalada com cânticos e muita música dedicada ao Divino Espírito Santo, realizada na Rua Nova de Santana, atual Rua Manoel Barata. Era a primeira, de uma sequência de eventos de sucessos, por ele organizados, das quais faziam parte o pai de Tó e seu conjunto de Pau e Corda, na sua grande maioria de caráter religioso. Era comum a ladainha ser entoada no bairro por sua importante função religiosa. Aliás, a palavra ladainha, cujo significado original em grego é “súplica”, surgiu em decorrência das muitas peregrinações que os fiéis católicos realizavam desde a idade média de igreja em igreja.
Diz a história que quando a casa onde habitou Nossa Senhora da Palestina foi transportada para a cidade de Loreto na Itália, em 1291, por obra de um único milagre, o fato de pronto caiu no conhecimento do povo, que resolveu de imediato, passar a fazer peregrinações quando havia necessidade de alcançar alguma graça divina.
Apesar de serem inicialmente dedicadas somente a Nossa Senhora, as ladainhas popularizaram-se tanto, acabando por serem dedicadas também a outros santos, como maneira de se alcançar milagres ou por mero agradecimento de graças já concedidas.
Essa tradição tão antiga de ladainhas ainda perdura como forma de homenagem aos mais variados Santos da Igreja Católica, em diversas manifestações culturais do Brasil, especialmente em cidades do interior dos Estados.
Posteriormente, será mostrada a estrutura básica da ladainha e a forma mais tradicional de sua composição, que foi muito utilizada por Mestre Martinho e em seguida pelo Mestre Tó Teixeira, ao qual é correto imputar o título de um dos maiores compositores do gênero na região Amazônica, dado o volume de peças preservadas de seu acervo.
Mestre Martinho foi uma singular expressão da cultura negra no Estado do Pará, tendo este amante da arte popular, vivido por muitos anos e influenciado gerações de artistas, que como ele exaltaram a riqueza e a grandiosidade da mistura étnica de festejos e peças musicais.
É certo que em meados de 1916, já com 81 anos, ainda gozava de muita saúde, com voz e compleição física de dar inveja ao mais nobre Senhor de Engenho, tendo continuado a liderar os festejos do bairro do Umarizal de maneira entusiasmada. Dentre os folguedos mais comuns, promovidos pelo entusiasta animador, estavam os mastros de santos. O mastro foi utilizado desde a idade média em Portugal, nos meses de maio, para celebrar as várias festas do mês e em junho, para comemorar o solstício do verão. Em geral, em número de três, os mastros saúdam São João, Santo Antônio e São Pedro, ficando mais conhecido o levantamento do Mastro de São João. Todos os mastros tinham, amarrados em suas pontas, fitinhas que simbolizavam os santos. Vários países da Europa e do continente americano têm o costume de celebrar com este mesmo cerimonial.
No bairro do Umarizal, o mestre dos mastros de santos era Martinho. Em certa ocasião, um mastro fincado fora das imediações do Umarizal fora fincado na cidade velha, atual Praça da Bandeira, permanecendo no local nos dias em que se seguiam as comemorações. A aristocracia não via com bons olhos aquela tradição, primeiro por tratar-se de uma festa de “gente de cor”, segundo por “tirar da beleza” da cidade. Eis que para piorar a situação, um raio atingiu o dito mastro fincado por Martinho no bairro aristocrático. Era o que queria um Juiz de direito da época não identificado, que ordenou a imediata suspensão daquela anarquia, que “punha em risco a integridade física dos moradores da cidade”, atraindo raios mortais para a terra. A proibição apenas acalorou a tradição, que até os dias atuais ainda se mantém.
Outra tradição do bairro do Umarizal era a fogueira junina. Conta a lenda católica que a fogueira surgiu de um acordo estabelecido entre as primas Maria e Isabel. Para que Maria fosse avisada do nascimento de São João Batista, uma fogueira seria acesa para que Maria soubesse e corresse ao encontro da prima para ajudá-la nos cuidados pós-parto, assim nasceu a tradição das fogueiras que iluminam as noites de junho.
Não basta ter ferramentas, é necessário saber usá-las. O Umarizal tinha todas as ferramentas de uma comunidade rica, não em dinheiro, mas em alegria, como sabiamente disse Tó Teixeira, mas por outro lado necessitava de alguém que soubesse utilizá-las com maestria. Foi esse ofício, que fez de Mestre Martinho o animador e agregador mais popular que nessa época Belém conheceu.
Martinho, certamente, inspirou a paixão de Tó pela cidade, por seu bairro e a ele concedeu subsídios para muitas de suas músicas. Tendo como força motriz a religiosidade, a genialidade do mestre Tó foi capaz de abstrair do imaginário popular e da atmosfera profana produzida por gente como Martinho, toda a riqueza, naturalmente leve, e ao mesmo tempo profunda e autêntica que somente a verdadeira arte, que emana do povo, possui.
Toda a musicalidade dos artistas do Umarizal produzia entre as festas religiosas, as danças e manifestações artísticas populares, como danças, bailes, jogos, cordões de pássaros, boi-bumbá, pastorinhas e também os “sambas noturnos”, que eram uma espécie de batuque, realizado à noite, com tambores e pandeiros e gritos agudíssimos. O samba noturno foi muito combatido pela sociedade, jornal da época o “Diário de Belém, na edição do dia 18 de setembro de 1884 pedia providências à polícia, a fim de proibir tais sambas por incomodar o sossego e a paz pública. A maioria dos sambas era realizado na Rua da Pedreira, Travessa da Piedade e Travessa da Princesa, segundo as anotações de Vicente Salles em seu livro “O Negro no Pará”.
Martinho morreu em Belém no dia 2 de dezembro de 1922, mas fez nascer na cidade o gosto pela cultura popular, pela alegria dos mastros de Santos e festas populares, que de maneira muito especial preencheu o imaginário e a inspiração do mestre Tó Teixeira, fazendo sua obra apoiar-se na atmosfera doce e terna das quermesses, arraiais e novenas que por si arrastavam cordões de pássaros e suas alegorias juninas.
Hoje a arte na Amazônia padece nas mãos de julgadores de editais públicos que não enxergam a arte verdadeiramente como um pilar histórico de desenvolvimento humano ao longo dos anos. Arte pura, arte verdadeira e cuidadosamente estudada e tecida com o fio da beleza melódica e sentimental, parece não agradar mais pareceristas que analisam quem fica e quem sai no mundo da produção artística. Se impressionam com aparência e não com a essência. Se satisfazem com a estética e não com a ética. Não há mais espaço mais para todos; somente para alguns que se “enquadram” na formatação limitada e baseada em número de seguidores, o espaço se abre.
Mestre Martinho se vivo fosse certamente sofreria esse aniquilamento e exclusão somente pelo fato de ser puro, bonito, autêntico e verdadeiro, sem nunca ter precisado de palco de trinta milhões para mostrar ao mundo o que é fazer e viver da arte.
Comentários