Publicado em: 8 de setembro de 2025
O Japão e eu somos velhos conhecidos. Mas sempre que aqui estou, descubro algo do Japão dentro de mim e algo de mim no Japão. O Japão já teve vários nomes até chegar à Nippon ou Nihon, que significa em japonês “origem do sol” ou “onde nasce o sol”. Esse nome foi dado pelos antigos chineses, pois quando olhavam para o leste, lado que o sol surge e onde o Japão está localizado, diziam que os primeiros a ver o sol no horizonte eram os japoneses. Assim surgiu o nome Nippon ou Terra do Sol Nascente. Hoje, vivendo aqui como uma residente temporária, o que me dá o privilégio de observar com mais calma o cotidiano do país, aproveito o tempo livre para experimentar e analisar a cultura nipônica.
Perto de onde moro, tem uma pequena escola para crianças na faixa etária, suponho eu, de 5 a 12 anos. Algumas vezes, passando pelo local no horário que encerram as aulas, fico observando elas caminharem em pequenos grupos rumo às suas casas. Vão tranquilas, conversando, rindo, mas sempre atentas à sinalização viária. E eu, antes, maravilhada perseguindo-as com o olhar, hoje, continuo observando-as com toda a delicadeza que uma criança merece, porém, cheia de questionamentos.
Quando vemos crianças dessa idade caminhando sozinhas pelas ruas do nosso país, disparamos: “só um genitor muito negligente deixa uma criança caminhando sozinha pelas ruas, sujeita a todo tipo de violência”. Eis a grande questão! O nosso problema está em quem responsabilizamos. Será que a culpa é do pai que, muitas vezes, não tem a possibilidade de sair do trabalho para buscar sua criança na escola ou é de um Estado que não nos dá segurança, proteção, assistência, a ponto de nós adultos, muito menos nossas crianças, termos o direito de caminhar com traquilidade até nossas casas?
O que está acontecendo conosco que nos faz calar e normalizar situações inaceitáveis? Escuto com frequência, no Brasil, a reclamação de que não há presença efetiva do Estado em algumas áreas ou para certos grupos sociais. A realidade é que ninguém, em lugar nenhum, está seguro dentro do Brasil. A diferença é que em algumas áreas a ausência é total e em outras a presença é precária.
Diante desse quadro, uma das primeiras coisas que me veio à mente foi a obra de Thomas Hobbes, O Leviatã, que traz a seguinte introdução: “…é criado aquele grande Leviatã que se chama Estado” ao qual foi dado poderes soberanos em troca da segurança e proteção ao povo. Nesse ponto, os escritos de Hobbes que marcam o início dos estudos sistemáticos sobre a estrutura do Estado e as relações estabelecidas a partir do modo de organização da sociedade, conversam com os texto Totem e tabu, que inscreve o mito do surgimento da humanidade, e O mal estar da civilização, que faz uma reflexão do aumento do sofrimento humano a partir da criação da Lei, ambos escritos por Sigmund Freud.
O pai da psicanálise e o filósofo Hobbes construiram suas teorias a partir de mitos. Em Totem e tabu, havia inicialmente uma horda de homens-primatas que viviam subjugados ao poder tirânico de um indivíduo. Eis que um dia se revoltam e matam o pai da horda, único que usufruia todas as benesses, iniciando-se uma nova forma de organização social. Já Hobbes constrói o mito do Leviatã, um gigante – simbolizando o Estado – cuja criação é legitimada pela função de manter a ordem e a paz social. Ambos autores sinalizam a passagem de um estágio natural, não civilizado, ao estado social de direito.
É importante atentar que o Leviatã, apesar de não ser possível atribuir-lhe uma neutralidade filosófica, é antes de tudo um enorme esforço para buscar respostas aos problemas enfrentados pela sociedade européia da época. O mito, em cada caso, é uma forma de explicar a passagem do caos à vida em sociedade. E hoje, diante do enfraquecimento dos laços sociais e da sensação de desamparo, devemos retomar essa reflexão: qual é, afinal, o verdadeiro papel do Estado? Até onde vai a responsabilidade de cada indivíduo e até onde vai a responsabilidade coletiva? A psicanálise nos lembra que não somos apenas sujeitos isolados, mas produtos de um tecido social que nos molda. E é nesse entrelaçamento entre o individual e coletivo que se revela a importância de reconstruirmos a confiança para que o pacto social garanta um mínimo de amparo e proteção à sociedade.





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