0
 

Em um curso de escrita com Camille Castelo Branco (poetiza, escritora, professora, psicanalista e pós-doutora), ela perguntou o que escreveríamos se não tivéssemos a lealdade que evita trair pessoas próximas a nós, com amarras afetivas. Algo tão forte e intenso. No mesmo curso escrevi um texto cortante, das profundezas das intimidades. Não tive coragem de o pôr no mundo. Talvez traísse uma das minhas pessoas favoritas. Me sentia desnudando algo nosso ou, na minha fantasia, dela ou talvez traísse algo de mim mesma. Qual limite da escrita?

No mesmo período ouvi Ana Suy (psicanalista, poetiza, escritora, doutora e professora) falar algo que me fisgou. Alguém perguntava sobre amor ou felicidade, e ela argumentava a importância da psicanálise, da literatura, mas também constatava que tinha a sorte de ter uma vida sem grandes marcas relacionadas a violência.

Parecido com o que li recente no romance “Monique se liberta” de Édouard Louis: “Há seres que são sustentados pela vida e outros que precisam lutar contra ela”.

Essa rede de acontecimentos que envolvem o encontro, a escrita, a leitura, me trouxeram um insight, quase como que um sentido para sensação de estrangeira que, por vezes, me sentia habitada.

Oras, quem eu sou ou o que posso contar, se não tiver pacto de fidelidades produzidos pelos ditames sociais? Quem sou eu que minha escrita pode me levar a ser menos amada? Mas mais ainda, que lugar é possível para as pessoas que tem o que dizer sobre violências?

Por muito tempo sentia, e por vezes sinto, uma pontada de inveja daquelas que pareciam levar a vida de forma tão leve e fácil. Me perguntava por que tanto rancor, mágoas que não me escapavam ou retornavam em tantos sintomas e necessidades de grito. De nada me adiantava ler Freud falando da compulsão a repetição como busca de elaboração do traumático, que repete, repete porque clama destinos outros.

Nas minhas entranhas – marcadas por chicotes – e certo narcisismo, sempre vinha a sensação com uma espécie de mal-valia (nem sei se existe essa expressão, mas quero usar aqui), cheia de representações ligadas a ela: não sou tão divertida, não sou tão desejada, sou uma fraude, sou problemática.

Uma época pensei em tomar remédios: é preciso resolver essa sensação de desprezo por mim mesma, essa sensação de avaliar somente pela palavra errada ou gesto, milimetricamente sempre supervalorizados com intuito apenas de me menosprezar.

Minha analista segurou, sem dizer nada verbalmente. Vamos para palavra, me disse indiretamente.

Tal como minha terapia, algo na literatura tem me organizado nessa teia de elaborações e movimentos psíquicos. Com Ana Suy, constatei: então é isso, algumas pessoas têm vidas sem tantas marcas de violência (E daí ressalto a importância em proteger nossas crianças).

Recentemente, li o livro de Ana Paula Araújo, uma jornalista e escritora que publicou “Agressão: a escalada da violência doméstica no Brasil”. Trata-se de um livro dividido em capítulos sobre cada tipologia da violência doméstica, a partir de entrevistas, pesquisas e reflexões teóricas e informações legais. Lá também li sobre estudos empíricos que investigam mulheres que sofrem violências e seus efeitos do estresse pós-traumático.

Logo inaugurou por vários dias os questionamentos que são a base de neurose: “e se não tive acontecido isso?”ou “será que foi por conta disso?”, quem seria eu se o rumo das coisas fossem diferentes? Eis a trama da neurose.  A verdade é que nunca saberemos.

Lembrei do meu primeiro relacionamento que se iniciou com um conjunto de situações traumáticas e que levaram a exposição para outras. Violência psicológica, sexual, física. Será que se não tivesse encadeado minhas relações amorosas pela via da violência, nas próximas eu seria tão permissiva?

Na teia associativa, fui mais atrás e busquei as representações masculinas da minha infância, com também suas violências e, honestamente, não sei a resposta. O fato é que hoje sou quem sou, por tudo que passei e vivi. Gosto de quem sou. Mas tenho curiosidade de quem eu seria.

Quando li bell hooks falando sobre o amor, senti um soco no estômago. Entendi ali que a família muitas vezes é o primeiro núcleo que nos fazem confundir violência e amor, associar dor e prazer. Uma confusão de significados para as crianças: te bato porque te amo. Vi também como posso ser violenta com quem mais amo. Dali, passei a entender também que a violência gera violência. Aliás, a violência leva a vulnerabilidades, que permitem que pessoas violentadas possam se expor mais a situações novas de violência. Que coisa, não?

É na justiça que existe amor. Também aprendi com bell hooks: a desigualdade não oferece espaço para o amor, para a dignidade, para a alteridade.

Sendo assim, já que somos quem somos e não se apaga o que passou, mas se ressignifica, abraçar o fato de se entender que sou alguém que talvez precise remar mais contra a maré ajuda a atender minhas braçadas em auto-mar e auto-amar. Para algumas de nós será mais difícil, mas sempre há caminhos para se aprender com novos encontros (presenciais, na análise, na literatura) e formas de se relacionar.

Lembro quando Luísa, minha filha ainda criança, riu quando sem querer bati nela, sem revidar com raiva, e isso me inaugurou um novo lugar.

Lembro quando Telma, uma querida amiga, me recebeu em sua casa com todo cuidado e amor do mundo, e isso me inaugurou um novo lugar.

Lembro quando Marcio, meu companheiro, me disse que eu não precisava pedir desculpas, e isso me inaugurou um novo lugar.

Lembro do Caetano, meu pequeno, que quando recebe algum comportamento mais agressivo, sem entender e sem familiaridade, pergunta com certo estranhamento e curiosidade: por quê? Me inaugurando um novo lugar.

As relações são possibilidades de apresentar um novo repertório para aquele que estávamos, as vezes adoecidamente, fixados.

Além disso, embora eu precise de algumas romantizações para dar conta da realidade: Com tempo, eu entendi que nem todo mundo que canta uma boa música, sente (e quiçá viva) o que canta.

Eu tenho abraçado acolher aqueles que cantam com coração. E quando o encontro dá errado, tenho aprendido também a me defender. Com tempo, orgulhosamente decidi encerrar amizades que não me faziam bem, colocar limites – com afastamentos, verbalizações e afins – naquelas que não respeitavam os meus. Tem alguns poucos anos que me sinto essa pessoa que consegue primar por si, responsável pelo lar que é se habitar. Por vezes, as sensações voltam e algumas cenas me fazem revisitar os sintomas de meus traumas, afinal eles fazem parte de mim, mas me agarro no caminho que já descobri que existe: dos afetos em palavras.  Nem sempre com a coragem de trair aqueles que amo, aqui mesmo não conseguir expor algumas cenas que sei que marcaram meu desenvolvimento, mas com o que é possível dar conta. Que eu dou conta.

Recentemente tenho encontrado certa paz na figura da Vera Iaconelli (doutora, professora, escritora e psicanalista) por ela se posicionar a favor de uma clínica que nomeie as violências para as mulheres, por se dedicar profundamente aos estudos feministas e de gênero, transversalizando com a psicanálise, mas também pelo seu último livro, “análise”, que desnuda sua história, mostrando que é gente, com traumas e enredos que moldam quem se é.

Hoje entendo que a escrita pra mulheres, pública e fora do fórum das intimidades dos cadeados e segredos, paga um preço.

Sempre seremos lidas como alguém que se vitimiza, ataca ou que se expõem demais.

Como forma de repreensão, ouvia que minhas fotos não eram fotos de professora ou que minhas histórias poderiam afetar minha clínica. Penso que moldar a imagem da mulher é uma ferramenta de controle que deu tanto certo. Ainda mais em tempos de redes sociais, se escolha a imagem do personagem que precisa ser. Zen, fitness, equilibrada, leve, feliz, acima da vida em si, do ódio, dos erros e da angústia. Mas sou gente humana. Sinto e sangro, como todas e todos. Não quero imagem idílica, nem ser colocada em pedestal idealizado. Por isso também sei que é esse lugar e são esses relatos que já salvou e salva várias mulheres, pelas reflexões, pelo reconhecimento.

Entre tanta coisa, um ato político e elaborativo, escrever e ler, ser lida, é o que me serve e me cabe. E sempre farei questão de compartilhar meus insights vulneráveis e histórias marcantes, sinto que com isso me salvo e que também dou a mão a tantas outras mulheres.

Inclusive finalizo agradecendo as mulheres aqui citadas, tantas reflexões que vem se construindo tem a ver com esse encontro de linguagens entre nós. Meus sinceros obrigada.

E termino com poema de Adélia Prado, que Márcio me apresentou e disse lembrar ao ler esse texto,

“Ao escolher palavras com que narrar minha angústia,

eu já respiro melhor.

A uns Deus os quer doentes,

a outros quer escrevendo”

Escrever para não adoecer. É isso.

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

Ufopa realiza Campanha Pré-Sairé de vacinação e triagem de ISTs

Anterior

O Último Azul

Próximo

Você pode gostar

Comentários