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A poesia tem origens, como toda arte, da religião e no caso da Amazônia, a nossa genuína arte poética tem bebido na fonte da pajelança, ou como haveríamos de lembrar: do xamanismo, a prática da medicina ancestral, mas especificamente da medicina da floresta no entender da rural e ribeirinha realidade da verde e continental Hileia.

O nosso xamanismo é a pajelança, uma prática de transe, transmutação (e em alguns casos de metamorfose) e cura que coloca a palavra, em sua forma pura, na ajustada frequência, naquilo que vou chamar de o acorde verbal pleno e também naquilo que mais me interessa como etnopesquisador: a oração cantada que muita das vezes se utiliza de animais no ritual, esses conhecidos como animais de poder ou como eu gosto de falar: irmãos espirituais.

Em todo caso, aqui, o interesse é abordar a Poética do Etnoxamanismo Amazônico, um tema bastante profundo para se entender a identidade, os aspectos culturais, a linguagem e o perfil religioso desse complexo construto da poesia ancestral em ação no ritual da pajelança.
Em janeiro de 2018, estive com os Tembés, no interior de Tomé Açu, no imenso e rico Pará, e o Pajé Claudino Tembé me ensinou, dentre outras coisas, que os jacarés são os animais que levam o mal para o fundo do rio.

Claudino falou, que toda vez que você quer se livrar do mal, peça ao jacaré levá-lo para longe com uma reza que ele subitamente começava a silabar em sua língua pré-cabralina, do tronco linguístico tupi-guarani.

Eu cheguei a pedir a oração que ele conjurava com aquela estranha melodia que eu preferi ficar apenas ouvindo e ali no seu idioma sentia a força de um estranho poder.
Depois, em português, como exímio poliglota, ele disse que não se deve ensinar a oração até que seja passada para outra pessoa na hora certa, e fiquei quieto como aluno de um grande Pajé, na esperança de receber a oração na hora certa – o pajé é o pai de uma aldeia e ali aprendia a receber ensinamentos. Eu, professor, virei o aluno.

Não veio a hora certa e fiquei apenas com o entendimento em português da oração, que Claudino me sintetizava em poucas palavras.

Lembro também que ele falou no Grande Espírito que entre os Tembés se pronuncia “Tupano” e que “Ele nos visita, como todo pais que quer ver seus filhos, depois do almoço e antes de dormir, desde que encontre a janela ou a porta aberta”, dizia Claudino – naquilo que o Pajé e Cacique dizia ser a Hora Neutra, o momento no qual Deus visita seus filhos.

Fiquei pensativo depois dessa fala e confesso que até hoje faço minha meditação nesses horários, deixando a janela ou a porta da minha casa abertas, mais especificamente a janela, por um questão de segurança, esperando a visita do Criador – e posso dizer que… bem, é melhor vocês, leitores, experimentarem a sagrada Hora Neutra.

Voltando ao tema do felino de poder físico e espiritual, imaginem um animal que caça o jacaré, como a onça? Que poder arquetípico que esse animal tem!

A onça escala árvores e espanta os macacos, tem garras poderosas que assusta e misteriosamente ela deixa rastros redondos no chão para não aparecer fendido o chão – talvez aqui até uma forma de respeito à Terra-Mãe.
E mesmo assim, a onça assusta: é o temido “mão bolota” para os caçadores das margens da transamazônica (não há chance de sobreviver a um ataque desse felino).
A onça é o Jaguaretê, o “Senhor do Mato”, aquele que vai arrancar o teu medo e vai te ensinar a ser decisivo, a ter postura, elegância e discrição.

É o arquétipo da busca psíquica, da jornada espiritual, do autoconhecimento, do curador, da vontade de evolução, da proteção da sua “caça”, do foco, da paciência, das duas energias, a solar e a lunar, da objetividade (“Onça! gosta de matar tudo!…” – diz um famoso conto de Guimarães Rosa).
Há um canto que se ouve muito com os boiadeiros e diz:
“olha a onça/olha a onça/na ponta da areia/ se a onça de pega/ te traz a certeza”.
Certeza é o que o Senhor do Mato te ensina, ele muda a tua vida e te traz objetividade, determinação, solitude, a harmonia da força física atrelada à beleza.
Detalhe para o seu ronco que alcança centenas de metros, e quando faz tremer o chão e o ondular o rio: é o esturro da onça!

  • O arrepio.
    Eis aqui o meu poema da aprendizagem com o mestre Claudino Tembé e de minha pesquisa sobre o Etnoxamanismo Amazônico:

JAGUARETÊ – O PODER DA ONÇA

Jaguarê, Jaguarê,
Jaguarê,

  • Jaguaretê

Jaguarê, Jaguarê,
Jaguarê,

  • Jaguaretê

Senhor do mato
Senhor do rio
O Gato-Onça
De firmes garras
E de olhos:
Laranja, para os campos;
Verde, para as Matas
E Mangues;
E amarelo,
para a areia.

Jaguarê, Jaguarê,
Jaguarê,

  • Jaguaretê

As pintas:

  • a amarela –
    É o sol
    na terra

    E a escura
    É o mistério.

Jaguarê, Jaguarê,
Jaguarê,

  • Jaguaretê

Senhor do mato
Senhor do rio

  • Amazônica
    E pantaneira!
    O seu esturro
    É arrepio!

Solitária Fera,
Ágil:
Escaladora
Nadadora
Caçadora
E protetora.

Jaguarê, Jaguarê,
Jaguarê,

  • Jaguaretê

Senhor do mato
Senhor do rio
O seu urro
Escondido
Como o Sol
Ao crepúsculo
À espreita
Para o dia
Ou para a noite:

  • É arrepio.

Jaguarê, Jaguarê,
Jaguarê,

  • Jaguaretê

Benilton Cruz
Benilton Cruz é doutor em Teoria e História Literária, professor de alemão e do Curso de Letras-Português e Letras-Libras da UFRA, Campus Belém, autor dos livros: Olhar, verbo expressionista – O Expressionismo Alemão no romance “Amar, verbo intransitivo de Mário de Andrade; Moços & Poetas – Quatro Poetas na Amazônia - Ensaios Sobre Antônio Tavernard, Paulo Plínio Abreu, Mario Faustino e Max Martins; Espólios para uma Poética – Lusitanias Modernistas em Mário de Andrade; pesquisador e perito forense, editor do blog Amazônia do Ben; editor do Canal de Poemas No Meio do Teu Coração Há um Rio, no Youtube. Diretor da Academia Maçônica de Letras do Estado do Pará; e membro eleito da Academia Paraense de Letras.

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