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Meu personagem é um cantor. Seu palco é um lugar simples, com mesas dessas de bar, alguns ventiladores espalhados, teto de zinco. A banda que o acompanha é excelente, mas dela falo outro dia. Ele chega discreto, cumprimenta conhecidos, os colegas, músicos. É chamado ao palco. Hoje usa um colete marrom, simples, que ele considera seu traje de show. Nas primeiras músicas, ainda está, digamos, aquecendo, creio que o som precisa de ajustes, pois sua voz ainda está em volume menor que o conjunto. Há aplausos, um público fã de seu canto. E então, algo acontece. Agora ele ginga com o corpo sensualmente, quando vem um bolero, desses com letra bem teatral, desesperos amorosos, verdades lançadas em rosto, despedidas para sempre, uma estética perigosa para o bom gosto, se não houver um intérprete inteligente, que saiba tirar partido das situações propostas, servindo-se delas para usar todo um repertório de gestos, expressões faciais e principalmente, volteios com a voz, tirando o máximo das harmonias para encantar a platéia. Assisto a este homem simples, trajado de maneira simples, mais o colete e vejo nele um grande herói. Ele está encantado naquele palco. Não há pouco espaço, pouco público, ventiladores combatendo o calor, teto de zinco, não há nada. O espaço é todo dele, que, gigante, toma conta de tudo, com sua personalidade. Invade a todos, mas sobretudo, vive seu momento. Vejo seu corpo gingando, suas expressões e a voz. Não, é certo que não é um Cauby Peixoto, e não ouso compara-lo com Orlando Dias, por exemplo, este, que fazia do excesso sua característica. Penso que ele, dentro dele, está no Olympia de Paris, Madison Square Garden, enfim, uma platéia de Maracanã e ele dá tudo de si. Penso no que ele vê quando olha para nós, público. Se nos vê. Se ao invés disso vê-se em um palco tipo Follies Bergere, nós, todos trajados a rigor, homens e mulheres lindos, garçons passando com bandejas cheias de Veuve Licquot, uma grande orquestra em grandes arranjos e ele, pura delícia de viver. Tenho um sorriso nos lábios, de admiração, de reflexão sobre o que estou assistindo, uma alegria em estar ali. Olho em volta, todos rindo, dançando, batendo palmas, e bato palmas, também, conquistado. Sinto que no fundo, no fundo, ele não precisa de nós. Está em seu próprio sonho, um palco livre, ótimos músicos, repertório escolhido de encomenda para seu estilo, irretocável. Mas sei que daí a algumas horas vou encontrá-lo em local ainda menos considerado, já passado do ponto da bebida, recostado em uma cadeira e agora, como ressaca do show, está depressivo sobre sua vida, até onde poderia ter chegado, em uma cidade cruel para com os artistas, seu gênio muito reativo, alguma irresponsabilidade nos compromissos e o até onde poderia ter chegado? Imagino seu dia a dia, não sei se tem um emprego formal, se algum familiar lhe ampara, onde talvez até seja tratado como desdém, como aquele que não deu para nada. Sou um observador. Observo as pessoas com um scan de sentimentos, sensações, sofrimentos e alegrias. Como se vestem, como se movem, se há desgaste nas feições e penso em seus sonhos desfeitos, preocupações, tantas e tantas que simplesmente somem, quando ao final de semana ele canta em um cabaré, bar, 15 anos. Imagino-o vestindo-se para sair, o guarda roupa quase vazio e a escolha do traje. Escolhe o colete para dar um toque artístico. Caminha até o local entre o aborrecido por precisar de um ônibus, ele, o artista. Pensa que o cachê é uma migalha, mas súbito, às proximidades, vem um sorriso ao rosto, olhinhos de criança, enche o peito de ar e quando chega ao palco, com seu colete, olha em volta e, exatamente, o que será que ele vê?

Edyr Augusto Proença
Paraense, escritor, começou a escrever aos 16 anos. Escreveu livros de poesia, teatro, crônicas, contos e romances, estes últimos, lançados nacionalmente pela Editora Boitempo e na França, pela Editions Asphalte. Foto: Ronaldo Rosa

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