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Estamos sempre falando de sofrimento, mas, em geral, não paramos para pensar em como sua estrutura se organiza. Muitos já devem ter observado que o sofrimento contagia. Quando alguém chega contando suas desgraças o ouvinte não apenas se emociona como também é tentado a contar algo ainda pior, criando-se uma espécie de competição. Lembro-me, anos atrás, ouvir o que chamei de competição das “ites”, entre três senhoras. Uma começou a dizer que havia passado muito mal por causa de uma rinite que desencadeou uma sinusite. Foi imediatamente interpelada por outra que acrescentou que convive com a rinite e a sinusite há anos, mas que pior mesmo é quando “ataca” a otite. “Não há nada pior que dor no ouvido”. A terceira não se conteve e acrescentou: “tu tens é sorte que nunca tiveste uma bursite e nem tendinite como eu… são meses de sofrimento!”. Saí correndo antes que alguma “ite” me encontrasse. Porque o sofrimento é contagioso, vai se dissiminando. Sofremos porque o outro sofre e quando nos damos conta já tem vários sofrendo.

O fato de nos constituírmos enquanto sujeito a partir do olhar do outro faz com que também diante do sofrimento o reconhecimento daquele sobre a legitimidade, isto é, sua aquiescência de que merecemos ou não passar por aquilo, seja determinante na percepção do sofrimento.

Sofremos a partir de uma história que narramos de forma contextualizada e com a presença, ou não, de outros personagens relacionados a certa questão que nos convoca. Quando falo em narrar não significa necessariamente contar a alguém. Refiro-me à forma como organizamos na mente a história e elaboramos um entendimento para nós mesmos. Nem sempre é possível verbalizar os sentimentos. Algumas pessoas não conseguem traduzir em palavras suas dores, o que agrava sobremaneira a sensação de angústia. Um exemplo dessa dificuldade de nomear o sofrimento é quando o sujeito fala do quão sofrem as pessoas com as quais convive mas não fala de si, pois, ao não conseguir traduzir sua dor, prefere retirar-se.

Porém, como o que nos causa sofrimento é subjetivo, cada um vivencia de forma única. Mas, ao não conseguirmos colocar no discurso a história, o corpo vira o palco do sofrimento e a isso chamamos sintoma.

Por que sofremos tanto? Nós, humanos, somos os seres que mais nos mortificamos. Esse sofrimento que faz parte da condição humana é organizado tão singularmente que nunca nos repetimos. Não existem duas pessoas iguais. Cada pessoa experimenta suas emoções de forma única, traumática e se ordena de um jeito aparentemente tão desconexo que, invariavelmente, vai implicar em um sintoma.

Não há ninguém que não tenha sintoma. Todos os dia nos deparamos com algo da ordem da angústia, da perda, da preocupação, da memoração, do aniquilamento, da dor de existir que nos acompanha, resultante do desamparo que trazemos desde o nascimento. Foi exatamente a percepção do sofrimento humano que convocou Freud a estudar a mente. Mas foi na brutal importância que a linguagem exerce sobre nós que Freud constatou como o discurso vai construindo camadas que se sedimentam com o passar do tempo, de forma a determinar nosso modo de funcionamento e de atuação diante do sofrimento.

Fazemos uns “malabarismos” surreais para contornar o sofrimento e dar conta da nossa existência. Algo dói, mas vamos nos arrastando pela vida sem tratarmos. Colocamo-nos em um lugar lúgubre que por mais que tentemos é difícil sair, porque há um prazer incrível nesse sofrimento.

Contudo, apesar da dor existencial que nos acompanha, em alguns mais intensa que em outros, é possível, através de um olhar atento às singularidade de cada um, retornar ao momento primário onde o pensamento inconsciente (recalcado) foi compactado em um único pensamento ou imagem que se manifesta de maneira disfarçada. Dizemos disfarçada porque ocorre uma mudança (deslocamento) de um objeto de desejo pra outro, com a finalidade de dificultar ao sujeito localizar o que lhe causa sofrimento, justamente por ser um pensamento ou imagem da ordem do insuportável.

Assim, é pela escuta flutuante do analista, observando as particularidades contextuais, as diferentes manifestações sintomáticas de cada tempo, bem como os diferentes modos de sofrimento da contemporaneidade, que se permitirá uma armação discursiva capaz de trazer para a atualidade o sofrimento. A transferência com o analista transforma o entendimento a respeito do sofrimento, à medida em que se toma essa dor pela palavra e se pode dizê-la. Ao colocar em palavras a dor, traduzimos em linguagem esse grito do corpo e possibilitamos decifrar em ato o que era da ordem do inconsciente.

France Florenzano
France Florenzano é psicanalista, pós-graduada em Suicidologia pela Universidade de São Caetano do Sul. Whatsapp: (091)99111-5350 Instagram: psifranceflorenzano

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