Há alguns anos ouvi, por cerca de uma hora e meia, calorosa discussão – vale ressaltar que não era uma briga – acerca dos termos humano versus desumano. A contenda se arrastava enquanto eu, um tanto perplexa diante dos inflados egos, pensava que aquilo parecia ir “do nada para lugar nenhum”.
O que é desumano? Coisas, animais, vegetais, não são humanos. Existe algo mais humano do que a maldade, a indecência, a desonestidade, a corrupção, a imoralidade, o cinísmo, a ignominia, a sordidez e outros tantos adjetivos que poderíamos usar como elementos que compôe a natureza humana?
Friedrich Nietzsche, em seu livro Humano demasiado humano, descreve o lobo por trás da ovelha da seguinte maneira: “em determinadas circunstâncias, quase todo político tem tal necessidade de um homem honesto, que como um lobo faminto irrompe num redil, não para devorar o cordeiro que rapta, e sim para se esconder atrás de seu dorso lanoso”.
A natureza humana é assustadoramente contrastante. Fico lembrando da posição ambivalente da música nos campos de concentração, ora servindo como uma estratégia de sobrevivência que permitia aos prisioneiros fortalecerem o espírito e serem arrebatados para longe do horror, ora usada pelos nazistas “apreciadores” da música como uma forma de degradar as vítimas. O mesmo que tocava uma flauta com uma suavidade divina à noite, pela manhã levava prisioneiros às câmaras de gás.
Fiódor Dostoiévski, em seu romance O idiota, traz a tona elementos profundos da alma humana e, apesar de retratar a Rússia czarista, a sua temática sobre o comportamento ético é universal e, portanto, atemporal. O personagem principal é um sujeito encantador, altruísta, caloroso, bom, sensível, perspicaz, inteligente, generoso e honesto que, em meio a miséria, pode ver a alma humana sem as pinceladas de tinta que a revestem. Entretanto, por ser bondoso, vulnerável, não mentir, não trapacear e nem se corromper, passa a ser ridicularizado e considerado um idiota.
A sua decência o torna insuportável porque revela o lado mais podre da humanidade. O idiota de Dostoiévski, ao ignorar as regras sociais, é isolado, humilhado, usado e descartado. A lógica do mundo é então reforçada, isto é, quem não tira proveito dos outros ou manipula não se encaixa e é exterminado. Por isso o personagem vai se esvaziando até virar um espectro, derrotado pela própria autenticidade diante do mundo.
A verdade é que nos discursos falamos de valores nobres, mas a prática é bem distinta. O personagem encarna virtudes que a sociedade finge valorizar, mas que, de fato, despreza. No cotidiano vemos a zombaria disfarçada de inteligência, o cinismo com a embalagem da sagacidade e a bondade é vista como idiotice. Vivemos num mundo hipócrita e assistimos a humanidade se afundando na miséria moral. Zomba-se da ingenuidade, explora-se a boa vontade e descarta-se o outro quando esse já não convém. Um mecanismo extremamente perverso.
Vemos a santidade e a monstruosidade como duas faces de uma mesma moeda. Somos vítimas e algozes. Fiódor concluiu antes de Freud que somos movidos por uma força indomável, desejos inconfessáveis e incrivelmente contraditórios, com pulsões destrutivas. Nós somos isto, aquilo que Freud chamou de Id. A faceta mais primitiva da estrutura do aparelho psíquico, formada por desejo e impulso, em especial de desejos sexuais e agressividade.
Eis o humano!
Comentários