0

Logo que foi lançada a série Freud, no Netflix, assisti tão somente para que pudesse fazer minha critica pessoal, porque já sabia pelo comentário dos colegas da área que quase a totalidade da narrativa não se baseava em fatos reais. Hoje, apesar de transcorrido um certo tempo, alguns acontecimentos me impulsionaram a abordar o tema, especialmente por acreditar haver se tornado tradição a tentativa de denegrir a imagem de Freud e, portanto, da psicanálise. 

O uso de artimanhas para macular tudo que causa incômodo é um recurso utilizado desde que “o mundo é mundo”. Entretanto, nos últimos anos tornou-se um artifício cada vez mais recorrente. Talvez possamos atribuir ao fato de que apesar da ciência e tecnologia haverem desenvolvido substancialmente, o homem ainda continua nos primórdios. Evoluiu quase nada. 

Na série, Freud é apresentado como viciado em drogas, charlatão, volúvel, a ponto de envolver-se com suas pacientes e acusado até mesmo de compartilhar dos ideais nazistas, o que é, em absoluto, falso. Diriamos na contemporaneidade que é puro fake news.

De fato, quando Freud ainda era neurologista, ouviu falar que a cocaína, uma poderosa droga lícita, era crucial no tratamento de “doenças da alma”. Então, Freud começa a usá-la, diluída em água, para tratar casos de neurastênia, histeria, hipocondria, prostração nervosa e melancolia. Observando mais tarde que seus efeitos, diferente do propagado, era maléfico, deixa de prescrever e de consumir, passando a investigar o inconsciente a partir da fala. Fato que marca o início da psicanálise.

A declaração de que Freud colaborou com o Instituto Göring, é uma das maiores mentira e crueldade atribuida a ele. A verdade é que por negar-se a negociar com o denominado oficialmente nacional-socialismo, transformou-se em alvo e só não foi assassinado na Alemanha porque a princesa e psicanalista Marie Bonaparte, ferrenha opositora ao nazismo,  ajudou-o a fugir da Áustria com sua mulher e filhos. Entretanto,  suas quatro irmãs foram assassinadas pelos nazistas em campos de concentração. Diverso do que algumas pessoas tentam implacar, não foram abandonadas pelo irmão. Elas morreram  porque Marie não tinha mais recursos para resgatá-las. Idem Freud que já havia recebido ajuda. Daí as guerra e as perdas sofridas por Freud ecoarem em suas obras. Em Moisés e o monoteísmo, vemos reflexões acerca do anti-semitismo sem precedentes na história da humanidade.

Também na série não faltam criticas destrutivas com o intuíto de invalidar a prática, desqualificando-a metodológica e moralmente. Proliferando afirmações de que a psicanálise era pseudociência, forjada sobre falsas observações clínicas e, por isso, nociva e perigosa, bem como atribuindo resultados à pura sugestionabilidade. Essas falsas acusações foram rebatidas por várias pesquisas na década de 70 que comprovaram o funcionamento do método.

Não contentes com a desqualificação da psicanálise, decaem para denegrir moralmente a pessoa do autor, acusando-o de manter um relacionamento com a cunhada e de ser uma pessoa má, bem como de relacionar-se amorosamente com suas pacientes. A verdade é que Freud jamais se permitiu e combatia com veemência qualquer tipo de envolvimento entre analista e analisando por considerar que no setting analítico  o analísta está diante do infantil do sujeito com toda sua subjetividade. Sendo assim, um ato execrado de tal forma pelo pai da psicanálise a ponto de considerar como pedofilia tal comportamento. 

A série, a meu ver, ao induzir o espectador a acreditar que os fatos são verídicos,  coloca a posição ética dos analistas, de modo geral,  em questionamento. Um analista com boa formação, analise pessoal em dia, tem conhecimento de que qualquer tipo de “amor” manifesto pelo analisando em relação a ele é unicamente processo de transferência que aquele, por deslocamento ou substituição, lança sobre o objeto-analista. É um afeto, portanto, fadado a se dissolver e promover grande progresso na análise quando bem conduzida pelo profissional. 

O psicanalista bem formado sabe que  no instante que o sujeito se depara com o lugar da falta e coloca, na linguagem lacaniana, a questão: Che vuoi? (quem sou eu?) A metonímia significante paralisa e o “amor” aparece como uma significação ao vazio.  Isso é, está inscrita no registro pulsional como necessidade de repetição e não repetição da necessidade. É o analisando depositando seu objeto faltoso no analista. Dessa forma,  não cabe ao analista interpretar esse “amor”, visto que o próprio afeto já é a interpretação do sujeito que atrelou o vazio, o amor e o saber. Cabendo ao psicanalísta unicamente manejar a questão sem se perder nela. 

A ética do analista é da contenção. Não devendo responder de forma alguma à demanda. A parceria entre analista e analisando é de outra natureza. Apesar de, por vezes, depararmos-nos com imaginários permeados de histórias romanceadas, o envolvimento entre analista e analisando não tem nada de belo. É da ordem da tragédia.

France Florenzano
France Florenzano é psicanalista, pós-graduada em Suicidologia pela Universidade de São Caetano do Sul. Whatsapp: (091)99111-5350 Instagram: psifranceflorenzano

Mais mulheres no secretariado em Belém

Anterior

TRT8 abre 2025 com itinerância no Marajó

Próximo

Você pode gostar

Comentários