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Fernando Pessoa escreveu que só se encontrava quando de si fugia, dentro de muitas vidas que outrora possuía em uma só vida. Uma declaração de diversidade essencial.

No avião em que eu estava, uma senhora idosa sentada ao meu lado me expressou de repente sua particular alegria de viver, confessando ser difícil a vida, mas que tinha orgulho de ajudar pessoas derrotadas.

Perguntei-lhe se era psicóloga ou terapeuta. Nem uma coisa nem outra. Disse-me nunca ter estudado tais ciências, mas que sabia interpretar angustias individuais. Que era alegre por natureza, continuou, sem precisar de muitas coisas para ser ou fazer alguém feliz e que se alimentava da solidariedade que praticava.

Veio-me a lembrança do grande filme intitulado “Luzes da Ribalta”, que retrata um palhaço idoso, desempregado, em fim de carreira, chamado Calvero (Charles Chaplin), que reprograma sua tristeza quando ajuda uma jovem bailarina chamada Tereza (Claire Bloon) que tentara suicídio em seu apartamento.

Ao chegar no prédio que alugava, Calvero sentiu o cheiro forte do gás e descobrindo a origem, invade os aposentos de Tereza já agonizante na cama por asfixia com gás deliberadamente aberto do fogão, conseguindo salvá-la.

O motivo daquela tentativa de suicídio fora a doença misteriosa que causava paralisia nas pernas da bailarina e consequentemente a vontade de morrer.

Salva pelo palhaço, entretanto, as pernas de Teresa continuavam inertes depois de tantos espetáculos na vida, fulminando a carreira da jovem angustiada, mas desafiando Calvero em curá-la.

Em uma histórica cena desse filme, Calvero levanta a hipótese de Teresa ser atendida por um médico alemão que inaugurava uma importante teoria sobre doenças psicossomáticas. Exatamente Sigmund Freud que na época dessa produção cinematográfica surpreendia o mundo. Charles Chaplin foi um sábio, assim como Freud.

Nessa interessante representação, duas pessoas se equivalem no fracasso, independentes do antagonismo de idades, Calvero e Tereza, ambas momentaneamente sem objetivos. O palhaço, derrotado pela idade e a bailarina derrotada pela doença, mas unidos por seus desafios.

Calvero consegue estimular o otimismo de Tereza em sua vontade de viver ao resgatar os movimentos de seus membros inferiores. Tereza estimula o talento do palhaço e juntos apaixonam-se novamente pela vida, recobrando o sucesso de seus talentos.

Parabenizei a senhora que não se chamava Teresa, falando-lhe da beleza desse filme e da importância da solidariedade humana, embora os laços entre as pessoas estejam tão deteriorados. Mais fácil tem se tornado atacar do que socorrer, mas viável tem sido difamar do que enaltecer, muito mais, ainda, prejudicar do que beneficiar, sob todos os pretextos sociais, pessoais, institucionais, ideológicos ou até religiosos que não se equilibram em pé diante do espelho. Eis o ser humano.

Ela gostou e me confessou ser a primeira vez que “andava” de avião. Mas que não tinha medo da morte pois “já tinha feito muito bem às pessoas”, embora ainda não quisesse morrer.

Ernane Malato
Ernane Malato é escritor, jurista, humanista, mestre e doutorando em Direitos Humanos pela PUC/SP e FADISP/SP, professor e pesquisador da Amazônia em diversas áreas sociais e científicas no Brasil e no exterior, membro das Academias Paraenses de Letras, Letras Jurídicas, Jornalismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Estado do Pará, atualmente exercendo as funções de Cônsul Honorário da República Tcheca na Amazônia.

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