De todas as atividades do grande músico que se foi, sobressai a de empregar seu vasto e singular talento na democratização da música, a mais nobre das artes. Arthur Moreira Lima foi um dos maiores pianistas nacionais. Seu trabalho de resgate e difusão das raízes culturais brasileiras engrandeceu a nossa cultura. Solista da primeira audição do Concerto n. 1 de Villa-Lobos no Japão, Rússia, Áustria e Alemanha, que fez reviver a obra de Ernesto Nazareth, pensava naquele que normalmente é segregado dos grandes teatros dedicados à erudição. Se o trabalhador não tinha como ir ao Municipal ouvir Chopin, Arthur levava Chopin ao trabalhador. Simples e justo. Misturando Liszt, Nazareth, Chopin, Piazzolla, Bach, Villa-Lobos, Mozart e Pixinguinha, conquistou o público: disseminando a música erudita e valorizando, em sua devida dimensão, a música popular. E tudo isso sem concessões, com rigor extremo.
Não aceitava fronteiras rígidas entre o erudito e o popular, entre arte maior e arte menor. Mostrava que são diferentes expressões de uma mesma cultura rica, diversificada e em eterna ebulição. Com a mesma concentração, o mesmo empenho e o mesmo preparo com que se apresentou no Lincoln Center, de Nova York, fez concerto na garagem de ônibus da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Era capaz de armar o mesmo repertório, indo de Chopin a Pixinguinha, em qualquer palco do mundo, não importando se o público pagava dezenas de dólares ou assistia de graça, se a plateia usava gravata ou bermudão. Pelo Brasil afora, Moreira Lima levava em seu próprio caminhão um de seus pianos e seu próprio afinador. Podia ser um teatro elegante, uma quadra de escola de samba ou a orla do Portal da Amazônia, em Belém, onde assisti a um de seus concertos, em uma belíssima noite de verão. Ele respeitava o público sempre com idêntica reverência. A frase de Fernando Brant, numa célebre canção escrita com Milton Nascimento, “todo artista tem de ir aonde o povo está”, podia com toda justiça ser aplicada no dia-a-dia de Arthur Moreira Lima.
Durante quatorze anos, ele foi aluno da professora Lúcia Branco. Já era considerado um menino prodígio. Volta-e-meia, ao sair da aula, Moreira Lima encontrava na sala de espera um rapaz mais velho, que esperava a vez. Um dia, a professora comentou: “Esse rapaz que vem depois da sua aula quer ser pianista clássico. Mas ele faz músicas tão lindas que devia se dedicar ao seu próprio trabalho”. Era Tom Jobim.
Moreira Lima teve sua gravação das obras completas de Chopin considerada pela crítica norte-americana como “o mais importante registro pianístico do ano”. O crítico Dominic Gill, do “Financial Times” de Londres, um dos mais rigorosos da Europa, escreveu que “Moreira Lima sabe tudo sobre o piano romântico, fazendo seu instrumento falar”. Guardava com especial carinho a lembrança da revista suíça que o alcunhou de “o Pelé do piano”.
Gravou uma antologia de obra de Villa-Lobos para piano, e outra de Radamés Gnattali. Com três grandes orquestras européias: a da Rádio de Moscou, a da Rádio de Varsóvia e a de Câmara de Moscou, Arthur Moreira Lima gravou concertos para piano e orquestra de Mozart, Rachmaninoff e Tchaikovsky. Foi com seus discos reunindo a obra de Ernesto Nazareth, considerado pela crítica brasileira “um autor popular”, ou seja, menor, que ele foi incluído na lista das melhores gravações do ano, pela “Stereo Review Magazine”, dos EUA, e se tornou o maior vendedor de música instrumental no Brasil. Seu disco reunindo as “Valsas de Esquina”, de Francisco Mignone, é um clássico. Fez a primeira gravação de Brazílio Itiberê, o mais importante autor nascido no Paraná e que até 1955 permanecia praticamente inédito e desconhecido. Em 1997 gravou, pela primeira vez, obras do mestre argentino Astor Piazzolla especialmente transcritas para o piano. A gravação em Londres permitiu apresentações no Brasil, na Suíça, na Itália, na França, na Inglaterra e na Alemanha.
Por volta de 1978, ele trocou duas décadas de Europa pelo Brasil. Poderia ter ficado no exterior. Evitaria todos os entraves que um músico de formação erudita, mesmo com sua dimensão, encontra aqui.
Arthur Moreira Lima gravou nos EUA, Inglaterra, Rússia, Japão, Suíça, Bulgária e Polônia. Entre as orquestras e os regentes famosos se apresentou com as Filarmônicas de Leningrado, Moscou, Varsóvia, Sinfônicas de Berlim, Viena, Praga, BBC de Londres, National da França, sob a direção de Kurt Sanderling, KiriIl Kondrashin, Mariss Jansons, Serge Baudo, Jesus Lopez-Cobos, Sir Charles Groves, Vladimir Fedosseyev, Rudolf Barshai…
Arthur Moreira Lima cumpriu mais de meio século de carreira com o entusiasmo de estreante, intacto, intocável. Paz à sua alma!
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