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Fumegante, parecia espalhar afeto em forma de cheiro, fosse em uma louça chique ou em um pote de margarina. A maniçoba da vizinha, por ocasião do Círio, era motivo de contentamento e de união, e até de reforço de tradição – se assim se poderia considerar, um levante no meio da cidade.

Mesmo que as famílias mais antigas das ruas adjuntas conservassem o hábito de botar pra ferver seu próprio panelão da popular iguaria paraense, por sete dias, todas contavam com a esperada “porção de fé em forma de comida” que a vizinha generosamente separava para aqueles que tinham lugar cativo no coração dela.

À-boca-miúda, diziam que pessoas alheias ao verdadeiro sentimento de amizade forçavam um estreitamento de laço com a vizinha às vésperas de outubro, com o intuito de ganhar uma vasilinha da maniçoba especial.

Mas quando: a vizinha não era nada ingênua.

De fato, houve um ano em que uma pessoa não contemplada encontrou numa esquina uma senhorinha toda trabalhada na ingenuidade e sem pestanejar jogou a tese:

— Essa é a maniçoba da nossa vizinha né? Poxa, sabes que a fulana de tal que está em estado interessante me pediu essa maniçoba. Agora, o pequeno vai nascer com cara da maniva.

A senhorinha não teve outra alternativa, imbuída pelo espírito ciriano, que não fosse ofertar seu cobiçado bocado.

Abarrotada pelo pecado da gula, a pessoa seguiu para casa se imaginando a saborear cada pedacinho de charque, de calabresa, de toucinho, de bacon….nessa reta torta de pensamento e passo, bateu com o pé esquerdo na calçada e o trambolhão resultou em tudo no chão. Testemunhas deram conta de que a gulosa chorava copiosamente não pela queda, mas pela certeza do castigo imposto.

Por muito tempo, a maniçoba da vizinha foi pano-de-fundo de vários outros causos das redondezas, até que, em dado momento, a vizinha abraçou outra crença, diante de que a maniçoba do Círio passou a fazer parte da memória afetiva da vizinhança.

Uma lembrança de aconchego como colo de mãe, como proteção debaixo do poderoso manto da Senhora de Nazaré.

Feliz Círio e abençoado almoço de domingo.

Paula Portilho
Paula Portilho é jornalista, Relações-públicas e consultora em comunicação política.

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