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E como é época de Círio, conto a vocês uma história um pouco assutadora mas, igualmente, curiosa.

Gostaria de falar sobre uma criatura curiosa.

A figura era demasiado católica, mas má. Terrivelmente má. Tão má que a panela de maniçoba começava a zunir tão logo ela entrava na casa. E panela de Círio é bicho sapiente: suspira quando percebe coisa, e apita quando o perigo chega perto. Ainda mais, quando está escolada da gente que todo ano vem fazer discórdia.

Era a Estraga-Círio que chegava.

Figura maior da minha infância, criatura bela e sublime de aparência, cheia de aneis e colares, cabelo montado, roupas nobres, postura irreprochável, rica, mas horrorosa de inveja, desdém, despeito e ânsia.

Na família, a conheciam como « a Estraga-Círio », porque nunca tinha palavras de união, embora as tivesse, abundantemente, para demarcar diferenças. Era uma mulher severa, sem empatia pelo outro e sempre preparada para desprezar as pequenas conquistas por meio das quais os outros julgavam estar a viver bem a sua vida.

Muitos a temiam, pela discórdia que gostava de provocar. Outros, a desprezavam, mas respeitosamente se calavam, diante da figura mais velha e provecta. Terceiros, machucados por suas palavras e olhares, ao longos dos anos, solenemente, a ignoravam.

Porém, apesar de tudo, a Estraga-Círio era a alegria da criançada, eu inclusive.

« Lá vem a Estraga-Círio », gritavam, e haja criança a correr para a cozinha para ver o panelão de maniçoba começar a tremer.

E não é que era verdade? Mal a estraga-Círio entrava na casa, o panelão da maniçoba, com sua tampa atada com panos de prato nas orelhas e cabindas começava a sacudir, tremer e apitar.

Gargalhada geral da criançada. Aplausos e assovios da gente da cozinha.

« Esta maniçoba está excelente! », dizia minha avó Nida, às gargalhadas, feliz e envaidecida por tê-la feito, sempre acreditando que a comida do Círio era como uma pactuação orgânica da família com o mundo.

E a Estraga-Círio era parte da receita de Círio da família.

Era o ingrediente transcedental da nossa maniçoba, a confirmação do ponto certo da fervura das almas e das folhas.

« Esta maniçoba sabe das coisas », dizia a Quicê, minha babá, feliz da vida mas também um pouco maldosa – afinal, era a Estraga-Círio que chegava, não havia dúvidas, e ninguém gostava dela. Ela era a personificação da tristeza, da mentira e da violência, enquanto na minha casa vicejava a alegria, a verdade e a empatia.

A tristeza é sempre reacionária, enquanto que a alegria é, sempre, revolucionária.

E quem era, afinal, a Estraga-Círio? Era uma tia distante. Próxima de parentesco mas distante na vida. Era viúva de um tio que morrera novo, um tio muito triste, muito cabisbaixo. Diziam que ele ficara distante da família, justamente, por causa da Estraga-Círio. Contavam que se apaixonou por ela, mesmo sendo muito inteligente, e que essa paixão foi a sua desgraça. Contavam que ela sugou a sua personalidade, seu talento e sua alegria de viver, até que ele definhou e morreu.

« Inteligência não combina com paixão », a Quicê nos ensinava : « Se forem inteligentes, pelo amor de Deus, não se apaixonem; e se se apaixonarem, pelo amor de Deus, emburreçam, é só assim que salvarão as vidas de vocês! », dizia.

Olhávamos para a Quicê atentos.

« É só isso que peço… », ela concluia, em tom dramático.

E a Quicê era uma que entendia da Estraga-Círio.

A Quicê era minha babá – como já o disse.

Uma tia da Quicê trabalhou na casa da avó da Estraga-Círio, e é por isso que ela sabia das coisas.

« Não era que fossem gente má », dizia a Quicê, « mas era que eram gente egoísta. Viviam de acusar o outro. Era como se educavam: por ameaça, por medo, pelo grito. Tudo era coisa, dizia a minha tia, de saber quem era que era o culpado de alguma coisa ».

Eu, curioso como ninguém, pedia para a Quicê me explicar melhor, me contar mais.

E ela contava : « O coalho talhou? Pois bem, isso nem um pouco importava. Que se danasse o fato de que o coalho talhara. O que importava era saber quem o fizera, quem era o culpado. O coalho? Jogava-se fora. O culpado? Peia! ».

« Eu quero saber quem talhou o coalho! », berravam, e com isso, sempre, desviavam o fato, a coisa, a vida – ora o quê! – para a ideia de uma pessoa ser culpada.

E um dia eu perguntei:

« Foi Estraga-Círio, então, quem talhou o coalho? »

E a resposta veio, enigmática:

« Não foi, mas ela levou a culpa. E ela apanhou de talho, de cinturão e de serrote ».

Eu, de mim, malentendia o mundo alheio; mas o ouvia. Crescera numa cultura diferente, republicana, leitora de romances, muito, muito curiosa.

« E quem apanha, dá! », disse a Quicê, logo em seguida apensando:

« Só não dava quem era escravo ».

E concluiu: « mas era nisso que todos eles se fiavam! »

Aos poucos fui compreendendo que a estraga-Círio vinha do mundo da escravidão, mesmo que muitos anos se tenham passado desde o fim da escravidão. Vinha do mundo de ter escravos. Do mundo do delito de culpa. De um mundo em que a consequência de tudo era um ato humano, localizado, pessoal, e nunca uma coisa do mundo, uma coisa da vida, do mundo da vida, um acontecimento.

Ela vinha de um mundo triste, de gente que não quer ver o outro. E, nesse mundo, o erro nunca derivava do fato ou do ato, mas da pessoa. Era tudo coisa de culpar quem fez ou quem não fez, e não de cuidar do erro acontecido.

Fui compreendendo que a estraga-Círio vinha de um mundo profundo, colonial e feudal. De um mundo muito diferente do nosso mundo, na minha casa tão arrebatada e alegre – republicana, abolicionista, tolerante, burguesa, quase socialista…

E então me comentaram que a Estraga-Círio, aquela tia distante, mas bela, e fria como o inverno, tinha filhos que fugiam dela. Primos que eu mal conhecia. E me contaram que ela também tinha netos. E netos que fugiam dela. E isso, percebi, porque ela vinha de um universo anacrônico: de um universo sem outros, sem alteridade, sem alteridade que não fosse a alteridade de um oponente, de um inimigo.

Porém, comecei a sentir, um dia, certa ternura por aquela tia malvada.

E, assim, tomado não por alguma condescendência, mas por certo afeto, real e efetivo, buscando compreender o que ela não podia compreender, certo dia, em certo Círio dos anos 1970 (ou 1870 ?), foi que, entretido e curioso, ousei me dirigir à Estraga-Círio e, respeitosamente, dirigir-lhe a palavra (coisa que nunca havia feito antes, por puro medo),

« Senhora minha tia, a senhora não gostava de ver um coisa incrível realmente e decididamente incrível? », disse eu, respeitoso.

A estraga-Círio me olhou, solene, e respondeu com um pouco do seu desdém habitual,

« E seria o quê? »

« Venha comigo, minha tia, é muito interessante ».

Ela levantou-se, aceitou minha mão de apoio e caminhou comigo, pelo longo corredor, até a cozinha, no fundo da casa, onde lhe mostrei a grande panela de maniçoba.

« Veja, minha tia, quando a senhora se aproxima dela, ela apita e sacode! Sempre foi assim e gostaria de lhe dizer que isso acontece sempre, a cada ano, quando a senhora chega aqui em casa, no dia do Círio! ».

A estraga-Círio me olhou, aturdida e, mais aturdida ainda, olhou para a imensa panela onde ainda se cozinhava a maniçoba do Círio.

E, repentinamente, mais do que nunca, a panela se pôs a pular, tremer, apitar, sacudir. E isso, de fato, aconteceu, juro por Deus e por minha mãezinha que está no Céu.

A Estraga-Círio ficou espantada, estupefacta.

Recuou dois passos, muito amedrontada, para minha surpresa.

E cerrou minhas mãos, como se pedisse ajuda para entender o que se passava.

Num gesto nobre, do cavalheiro que eu já era quando tinha doze anos de idade, cerrei, agora eu, as suas mãos e busquei normalizar a estranheza do mundo :

« Não é interessante? Contam, por aqui, que a panela da maniçoba do Círio é um bicho muito sapiente!…. ainda que eu mesmo não perceba qual é a sapiência que de fato tem, ou se é mesmo sapiência ou mera impressão! »

Levei-a até a saleta, ignorando com condescendência, mas por educação, o seu olhar assustado, e, diligente, então, pedi que me contasse, por favor, as histórias de Círio de quando ela, minha tia, era criança.

Na imagem: A hiena de Salpetriere, pintura de Theodore Gericault, 1822 Sol. No Museu de Belas Artes de Lyon.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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