Outro dia fez cem anos que meu avô paterno, Cezar, nasceu e, dois dias depois, noventa e oito da minha avó, Luiza, também mãe do meu pai. Nenhum dos dois está mais nas bandas de cá. Quando eu nasci meu avô já havia partido há muito, ainda muito jovem, vítima de um câncer que deixou sequelas profundas em toda a família, mas de uma forma mágica ele sempre esteve lá.
É claro que eu nunca tomei conhecimento de qualquer defeito do meu avô. É claro que acredito piamente em todos os relatos bons que cresci escutando e não tenho o menor motivo para não acreditar neles, mas nesta altura do campeonato também sei que mesmo a melhor das pessoas erra, em algum momento. Só nunca irei saber qual. Aliás, lembrei que sei de duas histórias que o mostram mais como um homem do que como um santo. São ótimas.
Na primeira, meu tio Babá, o filho homem mais velho, chega esbaforido na casa dos avós, Manoel e Cacilda, pais do meu avô, depois de ter feito alguma traquinaria. Logo em seguida, meu avô chega, com o cinto na mão, atrás do moleque que, claro, já havia convencido os avós que era inocente das acusações, praticamente um anjo de candura. Meu avô estava possesso e exigia que entregassem o filho, devidamente escondido na barra da saia da sua avó. Seu pai então pergunta: “vais bater no menino?”, tirando prontamente o próprio cinto da calça e completando “então vais apanhar também”, dissolvendo completamente todo o mau humor e despertando uma gargalhada do meu avô – e que safou bonito o tio Babá.
A segunda é a prova de que, mais do que às vezes não percebemos que nossos ancestrais foram jovens, eles ainda muito jovens tinham responsabilidades inimagináveis no nosso entendimento de vida atual. Acho que, com a minha idade, meus avós já tinham sete filhos. Se-te. Eu não me sinto pronta para cuidar sozinha nem do meu gato. Mas, enfim, voltemos à história, na qual o moleque traquina, ainda que supostamente crescido, é o meu avô. Meu pai sempre me contou da relação extremamente próxima que tinha com o pai. Mais do que um herói, ele era um amigo com quem ele se sentia à vontade de falar e perguntar exatamente tudo e também com quem brincava. Pois bem, um dia, criança, encafifado, foi perguntar-lhe por que o seu pum tinha um cheiro ruim e o dele – supostamente – não. Meu avô não perdeu a oportunidade de trollar o filho: disse que era porque passava um perfume tal – com álcool na composição – lá naquele lugar, o que fez o moleque, claro, correr e fazer o mesmo e vocês devem imaginar o resultado ardente da questão.
Eu adoro essas duas histórias. Para mim elas são a prova de que meu avô era uma pessoa real, além do príncipe de gentilezas das histórias da minha avó, que me contou que, recém-casada, quis agradar o marido um almoço preparado por ela, que não tinha grandes habilidades culinárias, e errou o ponto da carne. Ele, prontamente declarou que a carne não estava dura, os queixos é que estavam moles. Nessas histórias, principalmente na segunda, é que eu consigo me relacionar e ver o meu avô em mim, até mais do que o fato de que ele amava ópera e vestia o terno para escutar os seus vinis favoritos na sala de casa, em respeito à música, e de onde obviamente, no consenso familiar, veio o meu gosto musical.
Minha avó eu tive a sorte de conhecer bem, mas vou deixar para falar mais sobre ela em outra história. Ela me chamava de “grandalhona” por ser a mais alta da família e, por isso, a fazer lembrar do meu altíssimo avô. Quando, adolescente, comecei a escrever e publicar crônicas num Uruá-Tapera ainda impresso e de distribuição mensal, minha também muito amada tia-avó Maria Helena, irmã de meu avô e que também já partiu, prontamente – e demasiado “corujamente”, eu diria – declarou que eu tinha herdado o dom de meu avô, que escrevia muito bem.
Meu avô me ensinou, dentre essas, muitas e muitas coisas, eu sempre imaginei com a mais profunda convicção. Mas quanto mais o tempo passa, cresce em mim a certeza absoluta de que, se tivéssemos por aqui nos encontrado, o nosso maior laço seria o de falar besteira, sermos meio doidos, de confundir as crianças, de rirmos juntos e, contra a imagem imaculada de todos, nos confidenciarmos que as melhores partes da vida são aquelas que não são levadas tão a sério.
Comentários