Nos próximos dias, Belém escolherá seu próximo prefeito. Entre os inúmeros desafios de uma cidade complexa, cujos problemas há muito ultrapassaram sua capacidade de angariar recursos, é preciso frisar aquilo que mesmo por mandamento constitucional deve prioridade absoluta: o futuro dascrianças da nossa cidade.
Assim como o resto do país e talvez com os agravantes próprios ao esgotamento de seu próprio modelo de desenvolvimento, Belém deixou de oferecer um presente e um futuro decentes para muitas das nossas crianças, que crescem abandonadas pelo Estado, em meio a um sem número de privações e violações de direitos.
Embora muito se faça em termos de políticas públicas e de uma sociedade civil vibrante e, muitas vezes, heroica diante da brutalidade da realidade, deve-se admitir que ainda é muito pouco frente ao tamanho dos problemas e dos desafios que a cidade enfrenta. A realidade dói.
A poetisa Adélia Prado dizia em outro contexto, no entanto, que a dor, por si só, não deve seramargura. Nesse sentido, é preciso converter essa dor, que todos sentimos, muitos, na própria pele, em programa político e exigir do próximo prefeito mais que um compromisso, uma missão. A missão de resgatar a cidadania e o futuro das crianças da cidade de Belém.
Não se trata de cometer injustiças aos gestores, técnicos e militantes da área. Muito pelo contrário. Trata-se de fazer justiça às suas causas. É preciso reconhecer, nesse sentido, os avanços na cobertura da atenção primária em saúde na cidade de Belém, bem como iniciativas positivas como as Unidades Amigas da Primeira Infância (UAPI) e a conclusão dos Planos Municipais voltados para área. Há muito por se fazer, porém.
Para um próximo período, é preciso mudar de patamar. O que parece faltar é à Belém é aberturaao novo. Abertura em aprender com experiências nacionais e internacionais, abertura à cooperação técnica e a investimentos na área e, sobretudo, abertura às décadas recentes de evidências acumuladas no campo. Governos exitosos a este respeito, como o de João Campos, no Recife, mostram que seguir esse caminho, além de tudo, pode render bons dividendos eleitorais ao gestor.
Cada cidade deve ter, é claro, seu próprio caminho. Mas, para animar o debate, coloco a título de provocação dez pontos para o próximo prefeito de Belém na área da primeira infância (lembrando que todas devem ser cuidadas). (Quase) tudo à luz daquilo que já deu certo em outros lugares e quepode funcionar para dar mais dignidade às crianças da nossa cidade:
1) Instituir a preocupação com a infância na legislação municipal com dois objetivos fundamentais: garantir desenvolvimento integral e serviços integrados e instituir o orçamento municipal voltado para a infância. Esse foi o caminho adotado, por prefeituras que aprovaram seus Marcos Legais da Primeira Infância e seus Orçamentos Crianças, como,por exemplo, a exemplo da prefeitura de Recife.
2) Criação de uma Secretaria forte e de um Comitê Intersetorial de políticas voltadas para a infância, ligado ao gabinete do prefeito. De nada adiantará elaborar planos, com metas ambiciosas e, muitas vezes abstratas, sem estrutura de governança capaz de implementá-lo. O comitê deve funcionar como uma “unidade de entrega”, utilizada nos governos britânico, da Colômbia, mas também no Governo do Estado de Pernambuco e outros.
3) Criação de um observatório municipal da infância. O prefeito precisa reunir pesquisadores, grupos de pesquisa e outros atores de dentro e de fora da cidade para que possa tomar decisões com base em informações de qualidade. O Big Data Social, do Governo do Ceará, pode servir de inspiração.
4) Integração de serviços, criação ou fortalecimento de fluxos. A rede de serviços, bem como o chamado sistema de garantia de direitos precisam funcionar de maneira integrada no município, para que as famílias conheçam seus direitos, os serviços disponíveis e seus caminhos. Além disso, para que os serviços, sobretudo de acolhimento às vítimas de violência, tenham efetividade. O Caminho da Criança, do Município de São Paulo pode ser uma boa referência.
5) Criação ou qualificação de equipes já existentes nos programas da Assistência Social para realização de visitas familiares. Consistiriam em encontros para orientar cuidadores sobrefortalecimento dos vínculos familiares, estímulos à saúde do bebê, desenvolvimento infantil e direito da criança. A cidade de Boa Vista já implementou um programa do tipo com o nome de “Família que Acolhe”, tendo sido premiada e estando agora em uma segunda fase, de envolvimento dos homens no processo.
6) Foco na saúde integral da gestante, do bebê e da família, desde o pré-natal. Belém ainda possui, por exemplo, uma taxa de mortalidade infantil ligeiramente superior à média nacional, um quadro inaceitável. É preciso e possível reverter essa situação. A etapa “tempo de nascer”, do Programa Mais Infância do Governo do Ceará pode ser uma inspiração nesse sentido.
7) Foco na criação de novas vagas para a educação infantil. Para se igualar à média nacional, Belém precisa dobrar o número de vagas em creches. Estamos atrasados, portanto. O prefeito precisa trabalhar junto com o Governo do Estado, com o Governo Federal e com a comunidade para virar o jogo.
8) Trazer para o município a experiência das Usinas da Paz, criando espaços para a primeira infância, como “bebetecas”. Instituições como a Fundação Bernard Van Leer e a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal têm experiência na construção desse tipo de espaço.
9) Investir no urbanismo social voltado para a infância. Espaços urbanos amigáveis para as crianças, como praças, espaços de brincar e outros tornam as cidades mais agradáveis, menos violentas e mais protetoras para todas e todos. Com um baixo custo e buscando investimento externo, inclusive aproveitando as potencialidades amazônicas, é possível construir espaços urbanos voltados para as crianças. Jundiaí, com sua “Cidade das Crianças”, e Recife, com suas praças da infância, mais uma vez, são exemplos nesse sentido.
10) Planos integrados para todas as infâncias. Belém precisa pensar, viver, respeitar e proteger todas as suas infâncias, devendo não apenas formular, mas também executar planos de cuidados para as infâncias indígenas, negras, ribeirinhas e quilombolas. É preciso, na linha de projetos exitosos já em curso na rede, combater todas as formas de racismo desde a primeira infância.
Provavelmente, esses dez pontos não cabem hoje no orçamento da cidade tal como está estruturado. Tampouco, por outro lado, tratam-se de medidas de outro mundo, tendo como referência cidades brasileiras e de outros países latino-americanos, bem como comunidades pobres dos Estados Unidos e outros países. Alguns deles, inclusive, tratam de organizar os recursos já existentes. De todo o modo, é preciso buscar soluções, parcerias e, sobretudo, ousar. É preciso, sobretudo, ter clareza, que é precisomuito mais do que um dia já foi necessário para nos chamarmos, com orgulho e sinceridade, de cidade criança. Com a palavra, os candidatos.
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