Celebrarmos conquistas históricas como o direito das mulheres ao voto e à candidatura para cargos legislativos e executivos é um sentimento amargo, pois atesta o histórico milenar de violência de gênero em que cidadania e dignidade foram negadas em razão do gênero. As conjunturas em diversas sociedades ao redor do planeta têm avançado, mas a realidade mostra que a política ainda é um ambiente hostil para as mulheres e a violência política de gênero continua sendo uma dura realidade, refletindo as dificuldades enfrentadas por mulheres em diversas esferas.
O levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre as eleições de 2022 revela que, embora as mulheres representem a maioria da população brasileira, essa superioridade numérica não é reproduzida na política nacional. As mulheres correspondem a 51,8% da população do Brasil, enquanto os homens representam 48,2%, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2019. Nas últimas eleições, somando a Câmara dos Deputados, o Senado, Assembleias Legislativas e governos estaduais, das nove mil setecentos e noventa e quatro mulheres que se candidataram, trezentas e duas foram eleitas para cargos políticos, enquanto dos dezenove mil e setenta e dois candidatos homens, mil trezentos e quarenta e seis foram eleitos.
Em suas lutas diárias para existir e resistir, mulheres enfrentam inúmeras e inenarráveis formas de violência. Para aquelas que decidem se dedicar à administração pública ou à legislatura, essas barreiras não apenas persistem, mas muitas vezes se intensificam. A jornada se torna ainda mais desafiadora para as mulheres que entram na política movidas por uma consciência cidadã, determinada a defender os interesses femininos e de outras populações marginalizadas, e não apenas para cumprir papéis coadjuvantes em um cenário dominado por homens.
Para falar com propriedade sobre a realidade da violência e da iniquidade de gêneros nos cargos políticos brasileiros, convidamos Francineti Carvalho, atual prefeita de Abaetetuba e candidata à reeleição, a dar seu depoimento para esta primeira parte de uma série de artigos que tem como objetivo dar voz a mulheres que têm atuações políticas em diversos âmbitos.
Francineti possui uma sólida formação acadêmica e vasta experiência em gestão pública e saúde coletiva. Ela é doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e possui um Mestrado em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), concluído em 1997. Além disso, é especialista em diversas áreas: Telecurso na área de Violência Doméstica pela USP-SP (2002), Avaliação Psicológica com Certificado de Especialista pela DALMAS – Escola de Líderes (2020), e Psicologia Hospitalar, com aprovação em exame teórico e prático pelo Conselho Federal de Psicologia (2020). Sua trajetória acadêmica começou com a graduação em Psicologia pela UFPA, onde obteve os títulos de Bacharel em Psicologia (1992) e Psicóloga (1993). Francineti lecionou na Universidade Federal do Pará entre 1999 e 2001. Sua atuação se destaca na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Pública, onde trabalha principalmente com temas relacionados a políticas públicas, saúde mental, psicologia infantil e psicologia hospitalar. Foi servidora pública nas Fundações Santa Casa de Misericórdia do Pará e no Hospital das Clínicas Gaspar Viana. Além de sua carreira acadêmica e na saúde, Francineti foi secretária municipal de Assistência Social em Abaetetuba (2001-2002) e secretária municipal de Saúde (2003-2004). Posteriormente, foi eleita prefeita de Abaetetuba, cargo que ocupou de 2009 a 2012, sendo reeleita para o mandato de 2013 a 2016 e novamente para o período de 2021 até o presente. Além de tudo isso, Francineti é escritora e poetisa, com livros publicados.
Ler um currículo destes faz presumir que sua detentora recebe, no mínimo, um tratamento respeitoso de todos em razão de sua trajetória. A afirmação, contudo, não é verdadeira. Apesar do reconhecimento da população de Abaetetuba nas urnas, que a elegeu para administrar o município por três vezes, Francineti relata a provação que é persistir em seu compromisso desde o começo da sua carreira política. Ela reconhece que houve alguns avanços na luta pela igualdade de gênero e nas conquistas femininas. Ao lembrar que, em décadas passadas, as mulheres sequer podiam votar e depois precisavam de autorização do marido para exercer esse direito, destaca o progresso até o momento atual, em que as mulheres têm o direito de serem eleitas. No entanto, ressalta que a desigualdade ainda é significativa. Em todos os campos, afirma que os espaços de poder continuam sendo locais onde as mulheres enfrentam dificuldades para estar, não por uma limitação pessoal, mas pelas barreiras impostas por esses ambientes.
Francineti diz que, ao mencionar espaços de poder, não se refere apenas ao executivo e ao legislativo, mas também à liderança dentro dos partidos políticos e sindicatos. Na maioria desses casos, as presidências e os cargos de comando são ocupados por homens. Isso cria barreiras para a entrada das mulheres no universo político, uma vez que, com uma liderança predominantemente masculina, esses espaços acabam dificultando a participação feminina.
A prefeita relembra que, antes da implementação das cotas e da obrigatoriedade de um repasse mínimo de recursos para as mulheres, a participação feminina na política era quase impossível. Atualmente em seu terceiro mandato, ela recorda as dificuldades enfrentadas em sua primeira campanha política, especialmente para captar recursos. Na época, os doadores raramente acreditavam na vitória de uma mulher, o que tornava a obtenção de financiamento extremamente difícil. Além disso, dentro dos partidos, as mulheres precisavam disputar os recursos disponíveis, e geralmente recebiam apenas o que sobrava.
Francineti também aponta a dificuldade que encontrou ao tentar convencer outras mulheres a se candidatarem a cargos de vereadora, muitas vezes ouvindo a resposta de que não tinham recursos ou condições para concorrer. As barreiras não se limitam à política; dentro da própria família, muitas mulheres enfrentam a falta de apoio, com maridos que não permitem ou não incentivam suas candidaturas. Ela enfatiza que é necessário discutir uma série de questões para garantir a igualdade de gênero na política, observando que, mesmo com a implementação das cotas, a desigualdade persiste. Nas últimas eleições, o aumento no preenchimento de vagas por mulheres nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas e na Câmara Federal não foi significativo. Vários partidos perderam mandatos devido a fraudes nas cotas de gênero, quando candidatas “laranjas” foram registradas apenas para cumprir a cota obrigatória, sem a intenção real de participarem da disputa.
“Eu sempre digo que a gente tem que fazer uma revolução, inclusive na nossa educação, já que ela é feita muitas vezes nas famílias de uma forma machista. A gente ensina que a tarefa feminina é do lar, as meninas têm que arrumar casas, cuidar dos filhos, cozinhar, já os meninos, no máximo, têm de comprar o pão na padaria ou colocar o lixo para fora. Então, precisa haver um questionamento, inclusive da forma como nós educamos meninos e meninas, porque um dos empecilhos que as mulheres costumam citar para não vir para a política é a sobrecarga que a gente vivencia. Por mais que você seja a prefeita da cidade, como é o meu caso, a sociedade, a família ainda cobra de você que você seja o responsável de ter uma casa arrumada, limpa, que seus filhos sejam exemplares e, se der alguma coisa de errado, a culpa é da mãe, porque enquanto ela está fazendo política o filho está sozinho em casa… Isso é uma forma de cometer violência de gênero. É o que costuma mais afetar as mulheres, é esse ataque pessoal à sua vida pessoal.”
São muitos os enfrentamentos de diversas formas de violência, como tentativas de silenciamento, agressões verbais, insultos, e ataques à sua imagem, corpo e vida pessoal. Um exemplo disso foi quando um vereador a chamou de preguiçosa na Câmara, uma acusação infundada, especialmente considerando seu histórico de vitória em três eleições e aprovação em vários concursos públicos. Esses ataques, segundo Francineti, refletem a tentativa constante de desqualificar mulheres, insinuando que não estão preparadas para ocupar espaços de poder. A violência de gênero não se limita aos ataques verbais, escalando muitas vezes para ameaças físicas. Ao perguntar para Francinete se ela já tinha vivido alguma forma de violência política de gênero, sua resposta foi enfática: “todas”, incluindo uma ameaça de morte.
“Uma vez a polícia confiscou uma madeira ilegal e a prefeitura era o fiel depositário. Esse cidadão, responsável pela extração ilegal da madeira, ficou com ódio de mim. Eu estava numa padaria, ele chegou e disse que eu ia pagar com sangue pelo que eu “devia” a ele. Esta é uma situação que os homens que são gestores públicos até podem passar, mas é muito mais raro. Como eu sou mulher, o cara veio, assim na frente de todo mundo, e me fez essa ameaça”.
Francineti prossegue o seu posicionamento:
“Eu acho que o primeiro ponto é a gente não se submeter. Eu já tive um momento em que eu não tinha condições, que eu tentei ser candidata a deputada, por exemplo, e o partido não deu a mínima. Passou o tempo e quando estava próximo de se encerrar o período de inscrição, eu recebi telefonema de líderes do partido dizendo assim “olha, a gente está precisando preencher vaga, você venha ser candidata!” e eu disse “não, não aceito!”. Então acho que começa por aí. A gente, enquanto mulher política, não pode se submeter a esse tipo de coisa. Hoje eu presido o meu partido em Abaetetuba, que é o MDB. Eu fiz uma chapa forte. Eu disse que não quero mulher só para cumprir cota. Eu quero mulher forte, mulheres que sejam exemplo para outras mulheres, que tenham pautas potentes e fortes. Então nós conseguimos construir isso. Hoje eu tenho uma aliança grande com vários partidos aqui nessa eleição. Em todos os partidos eu fiz questão de fortalecer isso. Nós queremos mulheres na chapa, mas não é qualquer mulher. São mulheres que de fato defendam a bandeira da igualdade de gênero. São mulheres que de fato lutem por uma sociedade mais justa, mais democrática, mais igualitária.”
No MDB, Francineti tem promovido diversos momentos de reflexão com as pré-candidatas do partido, oferecendo um apoio diferenciado. Ela diz que justifica essa atenção especial aos homens do partido, explicando que o suporte inclui assistência digital, discussões sobre violência de gênero e acompanhamento mais próximo das candidatas. Com seis mulheres concorrendo, ela acompanha de perto suas trajetórias, consciente de que as dificuldades que elas enfrentam são muito maiores. Ela também reflete com os colegas sobre a dupla jornada das mulheres, que muitas vezes precisam cuidar das responsabilidades domésticas após longas atividades políticas.
A participação feminina na política vai além de uma simples questão de representação numérica. Trata-se de uma luta constante por espaço, respeito e voz em um sistema que historicamente busca silenciar e subestimar a presença e as contribuições das mulheres. A violência política de gênero, infelizmente, ainda é uma ferramenta utilizada para manter as estruturas de poder inalteradas. Enquanto não houver uma mudança estrutural que torne a política um ambiente verdadeiramente inclusivo e seguro para as mulheres, as celebrações pelos direitos conquistados serão sempre parciais. A sociedade precisa reconhecer e enfrentar essas violências, promovendo um ambiente onde todas as mulheres, especialmente aquelas que se envolvem na política para transformar a realidade, possam atuar livremente e sem medo.
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