Em 1997 a americana Mary Schmich publicou no Chicago Tribune uma crônica cujo título, traduzido para o português, seria algo como “Conselhos, assim como a juventude, provavelmente desperdiçados pelos jovens.” O texto por certo passaria despercebido no Brasil não fosse a tradução feita pelo multimídia Pedro Bial, divulgada no Fantástico do último domingo de 2003: “Filtro solar! Nunca deixem de usar filtro solar. Se eu pudesse dar só uma dica sobre o futuro seria esta: usem filtro solar. Os benefícios a longo prazo do uso de filtro solar estão provados e comprovados pela ciência. Já o resto de meus conselhos não tem outra base confiável além da minha própria experiência errante…”
Nunca tive a pretensão de dar conselhos ou dicas sobre o porvir, salvo para Alana e Artur, meus filhos amados, afinal de contas tentar prever, decifrar, antever e facilitar o futuro da prole é tarefa ínsita à paternidade. Confesso, contudo, que de uns dias pra cá veio a mim uma vontade pungente de dar a todos um único conselho sobre o amanhã, uma única dica de como torná-lo melhor, mais próspero, harmônico, equilibrado e, por corolário, mais feliz.
Para atender este arroubo dispo-me dos meus pudores e rejeito a sensação de estar sendo intrometido, de invadir espaços que não são meus, tamanha a crença que tenho na imprescindibilidade deste singelo pitaco: “Manoel de Barros! Nunca deixem de ler Manoel de Barros. Se eu pudesse dar só uma dica sobre o futuro seria esta: usem a poesia de Manoel de Barros. Os benefícios a longo prazo do uso da poesia de Manoel de Barros estão provados e comprovados pela ciência. Já o resto de meus conselhos não tem outra base confiável além da minha própria experiência errante…”
Manoel nasceu em 19/12/1916 em Cuiabá e faleceu em 13/11/2014 em Campo Grande. Viveu a maior parte da vida na região do Pantanal, notadamente em Corumbá – a exceção foram os anos de estudo no Rio de Janeiro, onde formou-se em direito e onde viu despertar o dom da poesia, não uma poesia qualquer, corriqueira, mas uma poesia autêntica e arrebatadora, alimentada pela capacidade inigualável de desconstruir e reconstruir a língua, de reescrever o significado das palavras, de transformar verbos em substantivos, estes em adjetivos e com estes regressar aos verbos, num ciclo vicioso e viciante de lirismo e originalidade.
Sua força estava na despalavra, como ele próprio a chamava, magistralmente descrita e explicada num poema que tem o mesmo nome:
“Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra. Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas. Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros. Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo. Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore. Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros. Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas. Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com as suas metáforas. Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgos. Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos. Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afetos.”
O que não entendo, sinceramente, é como pude levar tantos anos para encontrar Manoel de Barros, usufruir de sua obra, gozar de seu encantamento, tomar pra mim um punhado da beleza infinda que ele criou e tornou tão disponível. Rubem Alves escreveu, certa feita, que as escolas brasileiras deveriam preocupar-se mais em ensinar poesia e menos em impor fórmulas que repetem ao invés de criar. Disse ele, com a autoridade de educador, escritor, teólogo e psicanalista, que nossas escolas não nos ensinam a pensar. Rubens tinha razão, e aliás foi numa crônica dele que encontrei a referência que me levou até Manoel, caminho encurtado graças ao amigo Fernando Leitão Jr., fã declarado do poeta, especialista em traduzir em fotografias parte da luz que capta na poesia manoelina.
Lamento muito que Manoel de Barros (e tantos outros como Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Drummond, Vinícius, Mário Quintana, Suassuna, Cora Coralina e Adélia Prado) esteja fora do currículo escolar obrigatório, quiçá do currículo universitário, seja lá qual for o curso, ao menos como disciplina complementar. Todo advogado seria melhor advogado se lesse poesia; todo médico seria melhor médico se lesse poesia, de igual modo todo engenheiro, todo profissional enfim, e todo cidadão. Seríamos todos melhores se a poesia fosse constante em nós.
No caso específico do trovador pantaneiro, a difusão maciça de sua obra seria hoje extremamente oportuna, eis que a temática central se assenta na relação do homem com a natureza e com seus semelhantes, pauta fundamental da reumanização que urge implementar se quisermos apontar o mundo na direção da saúde social.
Sobre isso o escritor angolano-luso-brasileiro José Eduardo Agualusa reportou: “Na entrevista que me deu, gosto em particular do momento em que o poeta se refere a Antonio Houaiss: ‘O Houaiss é um bom amigo. Eu disse uma vez que o Houaiss nunca vai fazer um verso porque o verso exige quase sempre uma imagem, e a imagem é consequência de uma falta de vocabulário. É uma indigência vocabular que provoca a imagem. Assim, quando um sujeito sabe quase tudo, ele não faz a imagem, ele solta a palavra precisa. Por isso acho que o Houaiss nunca fará um verso, não precisa. O verso é um socorro para aqueles que não dominam tão bem o idioma.”
Prossegue Agualusa: “A frase resume uma parte da ideologia que atravessa e justifica toda a obra de Manoel de Barros: o elogio do erro A outra parte tem a ver com a exaltação dos pequenos seres, com a valorização dos deserdados e de todos os marginalizados. A alegria com que Manoel de Barros reinventa o português sempre me fascinou. Ainda me maravilha. Imagino que nunca deixará de atrair novos leitores. A principal razão por que sua poesia continua atual, contudo, tem a ver com esse olhar atento e compassivo dirigido às margens do mundo. Manoel de Barros ajuda-nos a olhar os outros, os mais invisíveis de entre todos nós, e a encontrar neles a nossa própria humanidade.”
Por fim, para que ninguém se deixe influenciar pelo adágio popular e com isso lance dúvida sobre a qualidade do meu modesto conselho, que supostamente vendido seria se bom o fosse, invoco um testemunho insuspeito e rogo que, se não confiam em mim que confiem então em Mia Couto, um dos maiores expoentes da literatura lusófona, romancista e poeta moçambicano de notório e indiscutível talento, que reconhece em si mesmo a influência da obra de Manoel de Barros.
Escreveu Mia, ao tratar de reminiscências da infância, quando passeava com o pai pelos trilhos das estradas de ferro de Moçambique, uma verdadeira ode de louvor ao nosso homenageado, para em seguida dedicar-lhe o poema que batizou carinhosamente como “Um abraço para Manoel”:
“Nessas longínquas linhas férreas, em plena savana africana, eu preparava, sem o saber, o meu futuro encontro com o poeta Manoel de Barros. Porque não era apenas de poesia a lição que do meu pai recebia. Era de um sentimento do mundo que reencontrei, mais tarde, nos versos de Manoel de Barros. Quando me estreei na leitura da sua poesia, foi como se os meus dedos regressassem aos brilhantes inutensílios habitando a poeira do chão. Como se reinstalasse esse reino de beleza que nasce da inutilidade. Como se o sonho se impusesse como uma outra racionalidade. Os livros de Manoel de Barros confirmavam que a poesia não mora apenas nos versos. A poesia mora no mundo. E esse mundo é feito de mundos diversos com idiomas ainda mais diversos. Nesse caleidoscópio de razões e ignorãças, o poeta semeou uma infância que escapa ao tempo como o vento se esquiva da peneira. Essa infância não é apenas a de um olhar. É a infância das palavras, esse limbo onde tudo pode ainda ser tudo.”
“Dizem que entre nós há oceanos e terras com peso de distância. Talvez. Quem sabe de certezas não é o poeta. O mundo que é nosso é sempre tão pequeno e tão infinito que só cabe em olhar de menino. Contra essa distância tu me deste uma sabedora desgeografia e engravidando a palavra africana de tudo me tornei tão vizinho que ganhei intimidades com o teu chão brasileiro. E é sempre a mesma Terra, a mesma poeira nos versos, a mesma peneira separando os grãos, a mesma infância nos devolvendo a palavra, a mesma palavra devolvendo a infância. E assim, sem lonjura, na mesma água riscaremos a palavra que incendeia a nuvem.”
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