Eram quatro horas da manhã e baixou o santo na porta bandeira. Enquanto o camelô vendia anel, cordão e perfume barato, a baiana fazia pastel e um bom churrasco de gato. Iludida e enciumada, a porta bandeira sambava sozinha e afirmava que já o havia esquecido, ou ao menos tentava crer, mas na verdade, nesses lábios que seus lábios sugam de prazer, buscava sempre, a sonhar em vão, a cor vermelha, pele da sua boca e o coração.
Este, o coração, sem perdão, dizia e falava por si, questionando quem roubou toda a sua alegria. Queixava-se que o amor o havia pego pra valer, e que a dor do querer muda o tempo, a maré e o vendaval sobre o mar azul.
O bar mais perto depressa lotou, malandro junto com trabalhador. Um homem subiu na mesa do bar e fez discurso pra vereador. Vacilante, a porta bandeira retrucou: “vou te eleger, vou me despejar de prazer, essa noite o que mais quero é ser, mil e uma pra você…” Conhecido como navegante negro, ele desceu da mesa com a dignidade de um mestre sala, e ao acenar pelo mar, na alegria das regatas, foi saudado no porto pelas mocinhas francesas, jovens polacas e por um batalhão de mulatas.
Num rodopiar de mestre sala dos mares para porta bandeira, seguia ele a se declarar: “Tantas vezes chorei, quase desesperei e jurei nunca mais seus carinhos…” Certamente sabia que ninguém tira do amor, ninguém tira, pois é, nem doutor e nem pajé, o que queima e seduz, enlouquece, o veneno da mulher.
Enquanto isso, o corpo estava lá estendido no chão, com um silêncio servindo de amém. Depressa foi cada um pro seu lado, pensando numa mulher ou num time; eu olhei o corpo no chão e fechei minha janela de frente pro crime.
Situação estranha que nem pedra que lasca seu brilho, que queima no lábio um quilate de mel e que deixa na boca melante um gosto de língua no céu. Era como algo que batia na memória da minha pele, batia era no sangue que bombeia na minha veia e no champanhe que borbulhava. Parecia gente que quer viver no amor mas não quer suas marcas, qualquer cicatriz, sem perceber que a ilusão do amor não é risco na areia, é desenho de giz.
Romântico e galanteador, junto a bêbados e equilibristas, o homem sabia que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente, mas cheio de esperança, como quem dança na corda bamba de sombrinha, lembrando Carlitos, ele emendou o falatório: “eu sei que vocês vão dizer que a questão é querer, desejar, decidir, mas aí diz o meu coração que prazer tem bater se ela não vai ouvir, e aí minha boca me diz que prazer tem sorrir se ela não me sorrir também, quem pode querer ser feliz se não for por um bem de amor.”
Valorizando o cortejo, sem se deixar convencer, a porta bandeira em réplica vaticinou: “meu coração tropical está coberto de neve mas ferve em seu cofre gelado e a voz vibra e a mão escreve mar. Vou partir a geleira azul da solidão e buscar a mão do mar, me arrastar até o mar, procurar o mar.”
Ainda que o bravo feiticeiro insistisse, ela seguia convicta: “mesmo que eu mande em garrafas mensagens por todo o mar, meu coração tropical partirá esse gelo irá, com as garrafas de náufragos e as rosas partindo o ar, nova Granada de Espanha e as rosas partindo o ar.”
Não sei bem como terminou ou vai terminar a história de amor do mestre sala e da porta bandeira, que testemunhei junto com centenas de pessoas, feito desfile de carnaval na avenida. Também não sei que sentido isso tudo pode fazer, que nexo pode ter, qual a lógica envolvida. Talvez nenhum, talvez nenhuma.
O que sei é que fui assistir ao show de cinquenta anos de carreira do João Bosco, maravilha musical daquelas que não demandam explicação. Um êxtase de talento, sonoridade e beleza que não é imprescindível entender. Tal como viver, extasiar não é preciso.
Há línguas que não precisamos compreender; basta que saibamos ouvir e intuir, afinal de contas, desde que o dragão do mar reapareceu nas águas da Guanabara, tudo tem sido mais ou menos do jeito que o João vem dizendo: “aguiduloba, aguiduloba, aguiduloba, ai, ai, ai….”
Comentários