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Em 1974, no dia 25 de abril, Portugal viu a queda do regime ditatorial do Estado Novo, liderado primeiro por António Salazar e depois por Marcelo Caetano, e que por mais de quatro décadas governou o país, através um golpe militar pacífico que ficou conhecido como a Revolução dos Cravos. Sim, golpe militar pacífico é como a história descreve e a junção de “militar” com “pacífico” até hoje me faz imensa confusão, como dizem os portugueses. Pacífico porque não houve praticamente nenhuma violência durante o movimento, apoiado por estudantes, trabalhadores e até a polícia. O povo português saiu às ruas oferecendo cravos vermelhos aos soldados como um símbolo de liberdade, que os colocaram nas pontas de suas armas que não foram disparadas.

O Estado Novo foi uma ditadura que dominou Portugal por quarenta e um anos, desde a aprovação da Constituição portuguesa de 1933. Lemas como “Tudo pela Nação, nada contra a Nação” e “Deus, Pátria, Família” eram os mais conhecidos e amplamente utilizados e, apesar de sua natureza autoritária, declarava-se limitado pelo Direito e pela Moral cristã. Era considerado um Estado de direito e uma democracia orgânica (qualquer semelhança com o Brasil de 2018 não é mera coincidência). Salazar, sua figura central, era cultuado como um líder paternal, austero e dedicado à Nação. O regime era sustentado por uma intensa propaganda política, utilizando organizações juvenis, como a Mocidade Portuguesa, para “ensinar” aos jovens a ideologia do governo e promover o respeito ao líder, e era associado à Igreja Católica por meio da Concordata de 1940, que concedia vastos privilégios à instituição religiosa. A educação nacionalista e ideológica era controlada pelo governo, que promovia a exaltação dos valores nacionalistas. A PIDE, polícia política repressiva, exercia um grande poder e reprimia qualquer oposição política expressa ao regime, utilizando-se de interrogatórios, detenções e tortura. O governo também contava com organizações paramilitares como a Legião Portuguesa para proteger-se de ideais opositores. Com uma economia capitalista regulada pelo Estado e uma forte tutela sobre o movimento sindical, o Estado Novo procurou manter a estabilidade social e política reprimindo qualquer oposição.

A política colonialista mantinha, nesta altura, vários territórios sob a bandeira portuguesa. A Guerra da Libertação foi uma série de conflitos armados que ocorreram nas então colônias portuguesas na África, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, potencializada pelo processo de descolonização global após a Segunda Guerra Mundial e a crescente insatisfação das populações nativas com o domínio colonial, a repressão política e social exercida pelo Estado Novo, e a influência de movimentos nacionalistas e anticoloniais que buscavam a independência. O Estado Novo respondeu aos movimentos de libertação com medidas repressivas e políticas de contrainsurgência. Foram implementadas políticas de recrutamento forçado de soldados portugueses para combater nas colônias, bem como ações de propaganda para manter o apoio público à guerra colonial. Os confrontos tiveram um impacto devastador tanto para as populações locais quanto para os soldados portugueses. Milhares de pessoas morreram.

A Revolução dos Cravos foi desencadeada por um grupo de militares descontentes com a guerra em curso em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que depois do 25 de abril conquistaram sua independência, encerrando oficialmente o domínio colonial português na África. O 25 de abril começou na África. Em Portugal, as liberdades políticas foram restauradas, incluindo a liberdade de imprensa, de expressão e de organização política. As mulheres viraram cidadãs livres. Foram realizadas eleições livres e democráticas em 1975, e uma nova constituição foi promulgada em 1976, estabelecendo a República Portuguesa como um estado democrático de direito.

A história de como o povo português havia “virado a chave”, de uma forma geral, depois do salazarismo, sempre me fascinou, apesar dos estrondosos silêncios perpetuados até hoje sobre a violência colonial do dito Império Português desde 1415. Durante séculos, Portugal esteve envolvido no tráfico de pessoas, enviando navios carregados de africanos escravizados para suas colônias no Brasil, nas ilhas do Atlântico e em outras regiões das Américas. O país é considerado o maior traficante de pessoas da história (cerca de 6 milhões de seres humanos escravizados) e foi um dos últimos países europeus a abolir oficialmente a escravidão (a Lei de Abolição da Escravatura foi promulgada em 1761, mas a escravidão continuou a existir em algumas colônias até o final do século XIX). A abolição não acabou imediatamente com as práticas de escravidão e exploração, e muitos africanos e afrodescendentes continuaram a viver em condições de trabalho forçado e servidão. O comércio de escravizados deixou um legado brutal na história de Portugal e nas sociedades africanas e afrodescendentes, perpetuando desigualdades raciais, socioeconômicas, e o trauma intergeracional nas comunidades afetadas.

Nos últimos anos, aumentou o reconhecimento do papel de Portugal no comércio de escravos e nos horrores da escravidão pelos portugueses. Muitos ativistas e líderes sociais têm pressionado por reparação histórica e justiça para as vítimas da escravidão. Às vésperas da comemoração de 50 anos do 25 de abril, o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa disse: “Temos que pagar os custos (pela escravidão). Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”, apesar de não ter dito de que forma pretende fazer a reparação. Em 2023, Marcelo já havia dado uma declaração no sentido de que Portugal tem o dever de se desculpar pela escravidão transatlântica e pelo colonialismo, porém não tinha feito um pedido de desculpas completo.

A declaração do presidente português é necessária, porém tardia, incompleta e ineficaz. A grande verdade é que, no ano em que Portugal comemora 50 anos de liberdade, assistimos estarrecidos ao resultado das eleições parlamentares que elegeram 48 deputados do Chega, partido de extrema-direita liderado por André Ventura, uma figura nefasta que ganhou o rótulo de “Bolsonaro português” e sustenta uma pauta racista, misógina e xenofóbica, com um enorme apelo anti-imigrantes. Aliás, a semelhança com a falta de “coerência intelectual”, digamos assim, da trupe portuguesa com a brasileira é tanta que, um dos eleitos, ganhou notoriedade por ser um homem negro, brasileiro e detido duas vezes nos Estados Unidos por fraude imigracional.

Assisti ao Brasil, em 2018, eleger para presidente da república uma figura que prefiro nem adjetivar – e que só não deu um golpe anti-democrático, como mostra a investigação em curso, por pura incompetência. Era algo que parecia impossível depois dos horrores que o país viveu com a Ditadura Militar. Espero de coração que as comemorações do 25 de abril possam abrir a mente de parte da população portuguesa que parece ter esquecido (ou talvez nunca aprendido) a sua própria história. Portugal errou muito no passado, porém Portugal tem tudo para ser um paraíso do futuro. Só depende das pessoas. Como uma imigrante que por causa de uma branquitude seletiva em decorrência de um status acadêmico e artístico vive uma condição de privilégio bem diferente de milhares de outras irmãs e irmãos sul-americanos e africanos que vivem hoje em Portugal, dou-me ao luxo de ver o lado bom das coisas e das pessoas e de ter esperança pelo melhor. Portugal me acolheu e aqui sou feliz. Não me apetece sair nas ruas a cantar “Grândola Vila Morena” este ano, mas sonho que entoem tão forte que o espírito de solidariedade e a racionalidade invadam a alma de quem se fechou a eles. Espero que o povo português perceba a tempo que a democracia não é um bem garantido: é uma dádiva pela qual temos que lutar sempre – e que bom se a arma necessária for apenas um cravo vermelho nas mãos. 25 de abril sempre. Viva a liberdade.

Crédito: Nuno Saraiva
Crédito: Marta Monteiro
Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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