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É comum quando se fala em transtornos alimentares associá-los a uma questão de peso em decorrência da indisciplina, da pouca “força” de vontade, do desequilibrio e da ausência de autocontrole. Mas, na verdade, trata-se de como o indivíduo se relaciona com a comida.

Quando penso em transtorno alimentar, vem imediatamente ao pensamento a música comida, dos Titãs, banda de rock da década de 80, que traz no refrão a pergunta: “você tem fome de que?

Quem nunca abriu a geladeira de sua casa e ficou parado diante dela pensando: “Ah, nem sei o que quero comer… queria outra coisa…sei lá… não isso que tem aqui…”. A pessoa quer comer algo que não sabe o que é. Só consegue pensar que essa coisa tem que ser bem gostosa. Talvez algo com o mesmo gosto da satisfação primordial.

Mas, afinal, nessas questões alimentares, temos fome de que? O que sabemos é que há na comida algo do real que o sujeito não consegue simbolizar e que aponta para o resto puramente pulsional do objeto oral. Existe uma satisfação que não se relaciona propriamente com a comida, mas ao vazio. Daí a pulsão oral não se extinguir com o consumo do alimento. Ela faz seu arranjo circundando a falta deixada pelo objeto perdido para sempre. Então, a pessoa come aquilo do qual a comida é um simulacro. Come o vazio, que por não ser comestível, causa essa compulsão à devoração infinita, pois nunca se satisfaz, nunca basta.

O discurso social nos arrasta ao consumo, vendendo a ilusão de que podemos obter a satisfação da demanda do amor através de objetos. Mas nenhuma mercadoria, nada da ordem do ter, é ponte para preencher o vazio de ser do sujeito. Tampouco o amor é algo consumível. Mas, não raramente, a comida é colocada na posição de objeto que busca sanar essa falta.

Na psicanalise, Lacan usa a expressão italiana “Che vuoi?” para perguntar sobre a particularidade do desejo do sujeito. Que queres tu? É o questionamento que se faz ao sujeito sobre o que ele deseja e qual a relação dele com o seu desejo. Um desejo que pode estar escondido nas repetidas devorações do alimento ou na recusa que a anoréxica faz ao eleger comer o Nada num recurso desesperado para afastar o mundo do ter e reivindicar o seu direito a ser. Direito ao amor.

A bulimía, a anorexía e compulsão alimentar, são os princípais transtornos da atualidade. A clínica positivista, assim chamada por considerar o conhecimento científico o único conhecimento verdadeiro, através do Manual da Doenças Mentais, define cada um deles usando os seguintes critérios: o anoréxico é o indivíduo que tem medo de ganhar peso, que faz restrita ingestão de alimentos, ocasionando uma perda significativa de peso e que, além da dificuldade de perceber sua forma corporal também não se dá conta da gravidade do peso excessivamente baixo. Considera como compulsivo o indivíduo que ingere uma quantidade de alimentos absurdamente maior que a média, que não consegue parar de comer e nem controlar a ingestão, que não raro come longe das pessoas por ter vergonha da quantidade que ingere e, após o “ataque”, sente-se desgostoso, deprimido e culpado. Já o bulímico é caracterizado por recorrentes episódios de compulsão alimentar, seguido de comportamentos compensatórios como: vômitos autoinduzidos, uso de laxantes, diuréticos ou outros medicamentos, jejum ou ainda exercícios físicos em excesso, com o intuíto de impedir o ganho de peso.

Não obstante, a clínica do vazio, conceito relacionado ao mal-estar contemporâneo, aponta para uma posição onde o sujeito não se enquadra exatamente no entendimento positivista, nem se apoia nas estruturas psiquicas – neurose, psicose e perversão – muito menos relaciona o sintoma como constituído a partir da metáfora do retorno do recalcado, e sim, a partir de algo que afeta a constituição narcísica do sujeito e de um tipo de gozo que exclui o inconsciente, pois não se relaciona com o Outro. Assim, esses “novos sintomas” anoréxicos da clinica do vazio, estão dissociados do vínculo dialético entre vazio, falta e desejo. O vazio não vai aparecer da relação com o outro ao emergir o desejo como expressão da falta, visto estar dissociado do desejo. É algo inominável. É um vazio entorpecedor que se refere à angústia.

Na clínica do sintoma, e aqui falamos da abordagem psicanalítica, não se prioriza a identificação da estrutura psiquica do sujeito. É preciso olhar para além do mal estar que o paciente manifesta, pois, os transtornos vão se constituir de diferente maneiras. O grande nó da questão alimentar é que o transtorno se apresenta sem as manifestações clássicas da neurose e também sem os elementos da psicose o que torna o diagnóstico diferencial uma tarefa muito difícil. Observa-se, portanto, que diferente do que afirmou Freud em 1926, na atualidade, a anorexia não é própria da psicose e tampouco a compulsão alimentar da neurose. Elas podem estar em ambas estruturas.

Então, invés de tentar apoiar-se na estrutura, mais prudente é identificar quais os fatores subjetivos do sujeito e como o discurso social, em destaque o discurso capitalista, influencia a posição do sujeito, para que assim seja possível vislumbrar o lugar que a comida ocupa. Porque, como diz Lacan, o que o sujeito busca não é o objeto comida, mas uma coisa que não é possível consumir, é como um espectro de algo impossível de alcançar. Busca-se uma Coisa na comida, mas, a cada encontro com ela, depara-se com o desencanto de não conseguir lidar com o outro.

France Florenzano
France Florenzano é psicanalista, pós-graduada em Suicidologia pela Universidade de São Caetano do Sul. Whatsapp: (091)99111-5350 Instagram: psifrance2023

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