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Publicado: 7 de abril de 2025  

Durante séculos, acreditou-se que a linguagem humana fosse única por permitir combinações infinitas de palavras para gerar significados novos e complexos. Um estudo publicado na semana passada na revista Science, entretanto, mostra evidências que desafiam essa noção: bonobos, nossos parentes mais próximos entre os grandes primatas, também conseguem combinar vocalizações para criar mensagens com significados diferentes dos sons isolados.

A descoberta, descrita como revolucionária, sugere que a base da linguagem humana pode ter raízes evolutivas mais profundas do que imaginávamos.

Na comunicação animal, já se sabia que alguns sons podiam ser combinados, mas quase sempre de forma “trivial” — ou seja, os significados se somavam sem criar algo novo. Pense, por exemplo, na expressão “cozinheiro alto”: trata-se simplesmente de alguém que é um cozinheiro e que também é alto. Mas frases como “bom cozinheiro” já são outra história. Elas carregam significados compostos: a pessoa pode não ser “boa” em tudo, mas é boa em cozinhar. Esse tipo de combinação, que ultrapassa a simples soma das partes, é o que se chama de combinação não trivial, e é uma característica fundamental da linguagem humana.

Para investigar se os bonobos também seriam capazes dessas combinações complexas, a pesquisadora Mélissa Berthet, da Universidade de Zurique, passou oito meses observando grupos selvagens de bonobos na Reserva de Kokolopori, na República Democrática do Congo.

Com a ajuda de guias locais, ela começava o dia por volta das 4h da manhã para acompanhar os animais desde que saíam de seus ninhos noturnos. Ao longo do dia, gravava todas as vocalizações com um rigor científico inédito: quem emitiu o som, em que contexto, o que os outros bonobos fizeram em resposta, e até o clima no momento. Ao final do estudo, ela havia registrado mais de 700 vocalizações diferentes.

Dentre elas, muitas eram combinações de dois sons distintos, como “assobio e pio” ou “grito agudo e grito grave”. Três dessas combinações se destacaram por parecerem criar novos significados. Ou seja, eram combinações não triviais.

Os sons isolados têm significados bem estabelecidos. O grito grave, por exemplo, costuma aparecer em situações de grande excitação e parece significar algo como “estou animado”. Já o grito agudo serve para chamar a atenção dos demais, algo como “olhem para mim”.

Mas quando os bonobos combinam os dois sons, o significado muda: eles costumam usar essa sequência quando outro indivíduo está exibindo um comportamento agressivo. A nova combinação parece funcionar como uma mensagem social sutil, talvez algo como “alguém está se exibindo, fiquem atentos” ou até “pare com isso”. Ou seja: o todo é mais do que a soma das partes.

Para identificar essas nuances, os pesquisadores usaram uma técnica inspirada em estudos linguísticos humanos: analisaram estatisticamente os contextos em que cada vocalização ocorria. Em linguagem humana, palavras com significados parecidos tendem a surgir em contextos semelhantes — e o mesmo raciocínio foi aplicado aos sons dos bonobos.

Essa abordagem inovadora foi amplamente elogiada por especialistas que não participaram do estudo. “É um divisor de águas. Nunca vimos esse nível de sistematização em pesquisas com comunicação animal”, afirmou Gal Badihi, da Universidade de St. Andrews. Já o linguista evolucionista Cedric Boeckx ressaltou o potencial do estudo para abrir novos caminhos, inclusive entre outras espécies, como chimpanzés, gibões e saguis.

Para Simon Townsend, coautor do estudo, os bonobos talvez tenham herdado essa capacidade combinatória de um ancestral comum com os humanos, que viveu há cerca de 7 milhões de anos. Se isso for confirmado por estudos futuros, a ideia de que a linguagem humana surgiu do zero ganharia uma nova perspectiva: talvez ela tenha evoluído a partir de habilidades já presentes, ainda que em forma rudimentar, em outros primatas.

A pesquisa também desafia o foco tradicional nas gestualidades dos grandes primatas como principal canal comunicativo. As vocalizações, que antes eram vistas como menos sofisticadas, agora despontam como uma via rica e promissora para entender a origem da linguagem.

Com os métodos inovadores e os achados robustos deste estudo, cientistas agora têm um mapa mais claro para explorar as sutilezas da comunicação em outras espécies. A linguagem humana talvez não seja uma ilha isolada na evolução. Pode ser, sim, o cume visível de uma montanha antiga, cujas raízes profundas agora começam a ser reveladas com a ajuda dos nossos primos bonobos e de uma boa dose de paciência científica.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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