Publicado em: 5 de abril de 2025
É bastante recorrente a imagem do cientista ser associada a laboratórios herméticos, jalecos e teorias difíceis de traduzir ao público comum. Um artigo publicado na Nature no último dia 2 de abril, intitulado “From bench to bread: how science can enhance your hobbies” (“Do laboratório ao pão: como a ciência pode aprimorar seus hobbies”), rompe esse estereótipo ao mostrar como muitos profissionais da ciência estão levando seu conhecimento técnico para além das bancadas de pesquisa e transformando suas casas em verdadeiros laboratórios de experimentação criativa.
A reportagem acompanha cientistas que, em suas horas vagas, aplicam o método científico em hobbies como panificação, jardinagem, produção de kombucha, fermentação de alimentos e até a criação de esculturas de neon. O que todos têm em comum é o uso rigoroso da observação, da hipótese, da experimentação e da documentação — só que em ambientes informais e com propósitos mais pessoais.
Durante a pandemia da COVID-19, muitos cientistas se viram afastados de seus laboratórios. Foi o caso de Chantle Swichkow, que fazia doutorado em genética de doenças metabólicas na UCLA. Sem os experimentos diários no campus, ela se voltou para a fermentação caseira e criou o que chama de “Frankenstarter”: um fermento natural feito a partir da combinação de diversas linhagens de leveduras coletadas em panificadoras e laboratórios.
Seu interesse se aprofundou tanto que seu pós-doutorado passou a investigar interações entre leveduras e bactérias em ambientes fermentados.
“Eu etiqueto tudo como se estivesse no laboratório. Uso fita de laboratório, canetas específicas e anoto cada variável como tempo, temperatura, ingredientes”, diz Swichkow. “Reprodutibilidade é tão importante no pão quanto no laboratório.”
Ela também usa a experiência para popularizar a ciência. Moderadora da comunidade de fermentação do Reddit, Swichkow compartilha receitas, responde dúvidas e ensina conceitos de microbiologia de forma acessível. “Eu não quero que a ciência viva apenas na torre de marfim”, afirma. “O pão pertence a todos.”
Já a bioquímica Yvonne Henskens, da Universidade de Maastricht (Holanda), aplica processos de gestão laboratorial à produção caseira de queijos, iogurtes e pães. Cada projeto culinário é planejado como se fosse um protocolo clínico, com cronogramas, testes de variáveis e análises sensoriais. O engenheiro químico Jacob Brejcha, por sua vez, usa a paciência e precisão desenvolvidas na graduação para encarar receitas culinárias como desafios laboratoriais. “Se você erra uma etapa, pode perder horas de trabalho — exatamente como em uma reação química”. No jardim, o biólogo conservacionista Shaun McCoshum simula experimentos com diferentes tipos de solo para ver quais espécies nativas se adaptam melhor. Ele também coleta dados de pesagem e comportamento de borboletas monarcas em um projeto pessoal que alia hobby à pesquisa ecológica.
A engenheira mecânica Rosalie Phillips, que trabalha com prototipagem médica em Milwaukee, levou seu conhecimento técnico para um novo campo: a criação de esculturas de neon. O trabalho exige raciocínio espacial e previsão de etapas — habilidades refinadas no dia a dia da engenharia. “Você precisa planejar cinco movimentos à frente para não colidir os tubos de vidro”, afirma. Com isso, fundou a empresa Neon Signs from the Universe, que transforma sua vivência em ciência aplicada em arte visual.
Para muitos desses pesquisadores, integrar hobbies ao conhecimento científico representa uma forma de aliviar a pressão do meio acadêmico. A microbiologista Kate Howell, da Universidade de Melbourne, atesta algo muito importante: “há uma crença equivocada de que, se algo é divertido, não é ciência de verdade”. Mas ensinar microbiologia aos filhos por meio da panificação — como ela faz — pode ser uma das formas mais eficazes de ensinar.
Philip Zylstra, ecólogo florestal na Curtin University, usa sua experiência para reflorestar áreas do entorno de sua casa e compartilhar conhecimento com vizinhos. “O jardim e a floresta são viciantes”, diz. “É um prazer trabalhar com as mãos e aplicar o conhecimento acumulado de anos de pesquisa.”
Para esses cientistas, as atividades domésticas não são uma fuga da ciência, mas sim uma extensão dela — e uma forma de devolver à sociedade, em linguagem acessível, o conhecimento adquirido com tanto rigor.
A administradora do campus da saúde da Universidade Federal do Pará (UFPA), Gina Calzavara, mistura prática científica, compromisso social e sabor da Amazônia de um jeito único: ela cozinha em um fogão a lenha projetado por um professor da universidade, monta mesas com pratos e talheres, e alimenta trabalhadores do campus e pessoas muito pobres que acompanham parentes internados no hospital Bettina Ferro.
Nos bosques Camillo Vianna e Benito Calzavara, áreas verdes no campus da UFPA, ciência, educação ambiental, cultura de reaproveitamento e hospitalidade se cruzam em práticas que ecoam as iniciativas descritas na Nature: o conhecimento acadêmico é colocado a serviço de causas humanas e ambientais, de forma acessível e integrada à vida cotidiana.
Esses bosques são o resultado de um projeto pioneiro iniciado em 1990, o Trote Ecológico, idealizado pelo médico e ambientalista Camilo Vianna, então vice-reitor da universidade. A proposta substituiu os trotes abusivos por uma recepção cidadã, em que os calouros eram convidados a plantar mudas de árvores nativas da Amazônia, cuidar delas durante o curso e, assim, desenvolver vínculos com o território e a biodiversidade local. Foram plantadas espécies nativas, exóticas adaptadas e árvores úteis à região, criando um legado ambiental vivo que hoje abriga pesquisas interdisciplinares, reaproveitamento de resíduos sólidos e educação ambiental.
Gina, além de cuidar das áreas e coordenar o projeto de compostagem, estendeu biodiversidade com o “Plantando Árvores por Pessoas”, criado na altura da pandemia da Covid-19 para ajudar na ressignificação da dor da perda de entes queridos com o plantio de uma nova vida e, ao mesmo tempo, contribuir com o ecossistema e com o ambiente de pesquisa da UFPA.
Assim como os cientistas acompanhados pela Nature, Gina mostra que a ciência não precisa ser um território distante. A floresta é um laboratório, o fogão vira extensão da pesquisa e o cuidado vira, para além de uma prática de saúde mental, uma política pública de conservação ambiental e de saberes.
Foto em destaque: Rosalie Phillips, Neon Signs from the Universe, LLC
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