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Existe um processo gradativo muito interessante para nós, nativos da Amazônia, que se torna cada vez mais palpável: a decolonização do consumo cultural da população. Considerando que até muitíssimo pouco tempo nossos livros e apostilas escolares “ensinavam” que éramos descendentes dos portugueses, que os indígenas eram O Outro, que os negros eram basicamente inexistentes e que caboclo era um termo depreciativo, chegamos a uma época de culminância em que parece que, de forma generalista, entendemos que temos o direito e dever de valorizar as nossas mais diversas expressões culturais antes de engolirmos a seco o que dita o poder, a mídia e a moda do sudestino Brasil.

Claro que este progresso é fruto de um trabalho longo e árduo de muita gente que deu e dá murro em ponta de faca contra o mainstream e a pasteurização das expressões artísticas. Sem os fazedores e produtores culturais, assim como de educadores, pesquisadores das artes e cultura popular, e da mídia – principalmente a alternativa e independente – que dá espaço às manifestações amazônidas, essa valorização progressiva não seria tão nítida.

O crescimento da participação popular no Arrastão do Pavulagem é um reflexo claro deste processo é um ótimo exemplo para observarmos nesse sentido. Cada vez mais, o povo do Pará escolhe enaltecer e celebrar suas próprias referências, saberes e tradições, como espectadores e também como protagonistas ativos. Em 2025, o Batalhão da Estrela, grupo artístico que ocupa o centro do cortejo, alcançou um recorde histórico, com mais de 1.200 participantes das oficinas e ensaios formativos, número que triplicou em relação a 2022, quando apenas 400 pessoas se inscreveram.

Esse aumento expressivo mostra um movimento de reconexão com nossas raízes, em que o fazer cultural local ganha centralidade nas escolhas estéticas e afetivas da população. A maior presença de participantes nos preparativos do Arrastão simboliza a valorização de práticas artísticas que por muito tempo foram marginalizadas ou vistas como “menores” diante de padrões culturais impostos por lógicas externas ao território amazônico. Hoje, as toadas, os tambores e os ritmos de terreiro ecoam com orgulho pelas ruas de Belém, sustentados por corpos que se reconhecem neles.

O Arraial do Pavulagem, portanto, é uma das expressões mais consistentes da valorização da cultura popular regional. Formado em 1987 em Belém do Pará, o grupo de música autoral, com Ronaldo Silva e Júnior Soares como remanescentes da formação original, cravejou, ao longo de quase quatro décadas, uma trajetória profundamente conectada às raízes populares, construindo uma linguagem que desafia centralidades culturais forçadas ao longo da história. Foi declarado Patrimônio Cultural de Belém em 2017, do Pará em 2020 e, em 2024, foi reconhecido pelo Congresso Nacional e pelo Governo Brasileiro como Manifestação da Cultura Nacional.

O festejo que começou com um boizinho de 12 cm pelas alamedas da Praça da República hoje ocupa a Av. Presidente Vargas, reunindo multidões em torno da música, da dança e da memória. Antes da pandemia, a média de participantes dos domingos de Arrastão, era de 20 mil pessoas. Hoje em dia, como aconteceu na antevéspera de São João, mais de 35 mil ocupam as ruas da capital quando passa o Pavulagem. A celebração obviamente realça a força da cultura popular como entretenimento, mas também deve ser lida como instrumento de resistência, afirmação identitária e emancipação simbólica.

O Arrastão do Pavulagem, assim como as rodas de carimbó, a guitarrada, o brega e seus diversos subgêneros, são manifestos coletivos pelo direito de existir com voz própria, dançando e cantando ao som da memória e do futuro amazônico. Felizes nós que reconquistamos o orgulho de vivermos a nossa caboquice. 

Foto: Filipe Bispo

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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