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Não faltarão palavras para falar sobre a missão da vida do Bispo emérito do Marajó, Dom no Brasil, Monseñor na Espanha, Jose Luis Azcona Hermoso, mas no momento em que chega a notícia do adeus, quero apenas celebrar o “nosso velhinho”, com quem eu tive a grande felicidade de conviver à mesa da minha família e também na da sua família, e de quem eu vou recordar sempre com amor e alegria.

O mundo conhece Dom Azcona como um homem lutador, incansável e imparável na luta pela dignidade da população marajoara. Eu presenciei a presidenta do Congresso dos Deputados da Espanha, Meritxell Batet, ao entregar a ele o prêmio Jaime Brunet para a Promoção dos Direitos Humanos, outorgado pela Universidade Pública de Navarra, atestar o quão singular era este feito: uma instituição acadêmica premiar um religioso com uma codecoração de direitos humanos. No meio de tantos escândalos nos últimos anos, um padre católico que guerreia abertamente contra o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes é um sopro de esperança no planeta.

Mas, infelizmente, nem todo mundo conheceu o Dom Azcona que eu conheci, que sempre, ao me encontrar, abria um sorriso e falava com sua potente voz um pausado e sonoro Gá-bííííííí, com seu indefectível portunhol, e que sempre queria saber das coisas do mundo além das suas tantas batalhas. O Dom Azcona que adorava umas boas costelas de tambaqui, o Dom Azcona que amava cantar. Segundo ele, na Espanha, o ajuntamento de duas pessoas se chamava “dupla” e, a partir de três, uma banda. E, no Marajó, onde ele chegou antes de eu nascer, tudo vira um bom carimbó.

Não tinha uma vez que nos encontrássemos que não cantássemos juntos. Uma vez, em um recital que, às duras penas, conseguimos produzir em Soure, no qual fui acompanhada pela grande pianista Ana Maria Adade, convencêmo-lo de subir ao palco e, para uma paróquia de queixos caídos, ele entoou o seu tão amado tema “El Vito”, para a euforia geral daquela platéia que, acostumada com as conversas, discursos e sermões, ovacionou de pés o seu cantar.

Quando ele foi receber o Jaime Brunet, eu fui convidada para cantar, em sua homenagem, a “Valsinha do Marajó”, de Waldemar Henrique, na solenidade, em Pamplona. Aliás, antes que eu me esqueça, preciso deixar aqui uma reinvidicação feita por sua família: ele é de Dicastillo, um pueblo de Navarra, e não da capital Pamplona, onde a maioria das pessoas o associa erroneamente. Pois bem, é claro que a emoção de ter participado desta ocasião é inenarrável, mas o privilégio maior foi ter sido acolhida por toda a família Azcona Hermoso – em especial pelo irmão Javier, a cunhada Rufi e filhas, que tornaram meus dias lá inesquecíveis – e ter tido a oportunidade de ver suas origens, celebrar à mesa, e viver Dicastillo e testemunhar como aquela cidadezinha adotou o Marajó de seu ilustre filho, e que nunca esquece de ajudar o nosso povo com o que pode.

Lá, numa sala de pedras da casa do Javier e Rufi, eu vi o Jose Luis, despido de qualquer tratamento formal ou honraria, apenas um familiar conversando coisas corriqueiras da vida, em espanhol, relaxado, sem qualquer preocupação em se fazer entender. Sendo apenas Jose Luis.

Na última vez que ele me viu cantar, no teatro Margarida Schivasappa, depois que eu interpretei a zamba argentina Alfonsina y el mar, acompanhada do sensacional Salomão Habib, cochichou no ouvido da minha mãe: “a Gabi também é una mujer braba, non?”, com aquela expressão inconfundível de seu rosto.

Nós nos mandávamos audios no WhatsApp esporadicamente, às vezes descoordenados e sem protocolo algum. Um dos últimos, antes do terrível diagnóstico, ele me enviou um em italiano, porque tinha falado com algum padre italiano e tinha lembrado de mim. Eu também enviava videos de concertos, das apresentações musicais que ele, que foi por muitos anos professor de música no seminário, tanto sentia falta. O último que mandei foi em agosto quando, nas ruas de Vigo, na Galícia, me deparei com um coral da melhor idade de uma igreja cantando uma das músicas do Rei Leão.

Ainda não consegui chorar com a notícia da sua morte. Para mim, ele não foi. Dom Azcona sempre será a semente que ele plantou e regou da luta pelos direitos e pela dignidade humana. Jose Luis sempre será meu parceiro de duetos depois do almoço. Sou muito grata por sua presença em minha vida. Em suas palavras, “valeu”!

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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