Publicado em: 11 de setembro de 2025
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma às 14h de hoje, quinta-feira, 11 de setembro, o julgamento do chamado “Núcleo 1” da trama golpista, que envolve o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete de seus principais aliados.
O voto da ministra Cármen Lúcia, a única mulher não só na Primeira Turma, da qual é a decana, como em todo o STF, é sem dúvidas um dos eventos mais aguardados do ano, principalmente após o longo parecer de Luiz Fux absolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro.
O protagonismo da ministra, de 70 anos, não é isolado apenas ao já apelidado de “julgamento do século”. Com quase duas décadas de trajetória no STF e fama de posicionamentos firmes, Cármen Lúcia chega a este julgamento com a responsabilidade de acimentar uma Corte pressionada tanto internamente quanto por observadores internacionais. Ela carrega não apenas o peso de sua experiência, mas também a simbologia de ter se tornado referência feminina em um Judiciário historicamente dominado por homens.
Nascida em Montes Claros (MG), filha de uma família do interior, Cármen Lúcia trilhou um caminho ascendente no Direito. Graduou-se em 1977 e concluiu mestrado em Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), instituição na qual também lecionou por mais de duas décadas. Após ingressar por concurso na Procuradoria do Estado em 1983, destacou-se pela competência técnica e, em 2001, foi escolhida por Itamar Franco para chefiar a Procuradoria-Geral de Minas Gerais. Em 2006, recebeu a indicação do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ocupar uma cadeira no STF. Ela foi a segunda mulher a tornar-se ministra da casa. A primeira foi a ex-ministra Ellen Gracie.
Cármen Lúcia quebrou barreiras em cortes superiores. Foi a primeira mulher a presidir o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2012, e a segunda a assumir a presidência do STF (2016–2018). Em ambas as funções, atravessou períodos turbulentos, como a condução das eleições municipais de 2012 e o auge da Operação Lava Jato. Em 2024, voltou ao comando da Justiça Eleitoral, cargo que exercerá até 2026, tornando-se a primeira mulher a presidir o TSE duas vezes. Durante sua gestão no STF, chegou a assumir interinamente a Presidência da República em cinco ocasiões, quando o presidente e seus sucessores imediatos estavam em viagem ao exterior.
A ministra é conhecida por seu estilo de vida discreto e pela recusa em ostentar privilégios. Costuma dirigir o próprio carro, já devolveu diárias não utilizadas em viagens oficiais e, em sua posse na presidência do STF, pediu que os convidados fossem servidos apenas com café e água. A mesma simplicidade se combina a uma rotina de disciplina: começa o dia às 5h da manhã, dedica-se intensamente à análise dos processos e já chegou a encerrar sua gestão na presidência do Supremo com o menor acervo de casos pendentes entre os ministros.
Intelectual respeitada, possui um currículo extenso com sete livros autorais, dezenas de artigos e fluência em quatro idiomas. Seu apreço pela música popular brasileira também marca sua trajetória: fã de Caetano Veloso, convidou o cantor para interpretar o Hino Nacional em sua posse no STF. Também virou meme um video que entoa, ao lado da cantora Alcione, “Não deixe o samba morrer”, com a sambista puxando sua participação com “vai, Cármen Lúcia!”.
Católica praticante, mantém símbolos religiosos em casa, mas sua fé não a impediu de adotar posições progressistas em julgamentos de grande impacto social.
Ao longo de sua carreira no STF, Cármen Lúcia consolidou a imagem de magistrada rigorosa. Votou favoravelmente ao reconhecimento da união homoafetiva, à constitucionalidade da Lei Maria da Penha e à autorização de aborto em casos de anencefalia fetal. Também defendeu a possibilidade de execução da pena antes do trânsito em julgado, reforçando sua reputação de firmeza diante da lei.
É esse histórico de rigor e independência que torna seu voto no julgamento de Bolsonaro tão aguardado. Para aliados do ex-presidente, a ministra representa um obstáculo difícil de contornar. Para críticos do bolsonarismo, sua decisão pode simbolizar mais um passo na defesa da democracia. O fato é que, nesta quinta-feira, Cármen Lúcia novamente estará no centro da cena política e judicial brasileira, com a responsabilidade de dar um dos votos mais relevantes de sua carreira.
O julgamento da trama golpista teve início na terça-feira, 9 de setembro, quando o relator, ministro Alexandre de Moraes, e o ministro Flávio Dino votaram pela condenação de Bolsonaro, Mauro Cid, Braga Netto e demais acusados, classificando o ex-presidente como líder de uma “organização criminosa”. No dia seguinte, Luiz Fux proferiu um voto que surpreendeu não só a Corte, mas todo o país: foram quase 13 horas de manifestação, incluindo dois intervalos, nas quais absolveu Bolsonaro e outros cinco réus, condenando apenas Mauro Cid e Braga Netto pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Durante toda a leitura de Fux, Cármen Lúcia fez anotações, trocou impressões com o relator Alexandre de Moraes e manteve o semblante concentrado. A ministra já havia deixado clara sua posição em março deste ano, quando votou pelo recebimento da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR). À época, afirmou:
“Felizmente, o golpe não deu certo. Temos democracia no Brasil. Temos um Supremo atuando como sempre atuou. Para que mais uma vez o Brasil não tenha tentativa de golpe de Estado, para que essa máquina não continue a reverberar e explodir, como estão em alguns documentos.”
Seu posicionamento ganha ainda mais relevo por suceder o voto de Fux, considerado uma guinada de perfil. Em junho de 2023, a ministra já havia sido responsável por fixar a maioria no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que tornou Bolsonaro inelegível.
O voto de Luiz Fux nitidamente abalou as expectativas dos colegas da Primeira Turma. A leitura inicial era de que ele poderia divergir quanto ao tamanho das penas, mas não pela absolvição ampla de Bolsonaro e de outros cinco réus.
“Foi muito além do que imaginávamos. O estranho é que ele condena o ajudante de ordens, mas não quem dava as ordens, o ex-presidente Bolsonaro”, avaliou um ministro, sob reserva. Outro ironizou que, pelo voto de Fux, o golpe teria sido articulado apenas por militares, já que condenou apenas Mauro Cid e Braga Netto, ignorando reuniões de Bolsonaro com comandantes das Forças Armadas para discutir a minuta golpista.
A longa leitura levou ministros ao cansaço: alguns pareciam cochilar durante a sessão, que começou às 9h20 e terminou por volta das 22h. Fux impediu apartes, blindando-se de contestações diretas. A impressão que dá é que tinha a intenção de atrasar a sentença, marcada para sexta-feira.
Nesta quinta, a expectativa é de que Cármen Lúcia abra espaço para manifestações e que Moraes rebata trechos do voto do colega.
O posicionamento de Fux foi interpretado como uma guinada “do punitivismo para o garantismo”. O ministro, que ao longo da carreira se notabilizou por acolher teses da acusação, surpreendeu ao adotar integralmente os argumentos das defesas.
O contraste ficou ainda mais evidente porque, dias antes, Fux negou habeas corpus a um homem condenado por furtar cinco desodorantes no valor de R$ 69,95 em Nova Lima (MG). Em 2025, ele já havia rejeitado pedidos semelhantes em casos envolvendo o furto de uma calça jeans de R$ 70 e de uma peça de carne de R$ 90.
Em março deste ano, contudo, ao receber a denúncia contra Bolsonaro, Fux foi categórico: “Por isso, não se pode, de forma alguma, dizer que não aconteceu nada”, disse na ocasião, classificando os episódios como ataques marcantes contra a democracia.
A mudança de postura fragiliza sua coerência. Fux, que votou na aceitação da denúncia, não levantou, à época, a questão de que o STF não deveria ser o foro para a análise. Mesmo com essas argumentações tendo sido apresentadas pela defesa, elas não foram consideradas pelo ministro.
Apesar da divergência, a tendência é de condenação. O que se comenta é que, com o intuito de manter sua liberdade de circulação nos Estados Unidos, o posicionamento de Fux expôs seus colegas a riscos políticos e jurídicos, inclusive a possíveis sanções internacionais associadas ao entorno de Donald Trump.
Na terça-feira, ao ser questionada sobre a possibilidade de condenação de Jair Bolsonaro no STF, a porta-voz do governo dos Estados Unidos, Karoline Leavitt, declarou que a suposta defesa da liberdade é a principal prioridade do presidente Donald Trump.
“Posso dizer que essa é uma prioridade para o governo. O presidente [Donald Trump] não tem medo de usar o poder econômico e o poder militar dos EUA para proteger a liberdade de expressão ao redor do mundo”, afirmou.
O assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, embaixador Celso Amorim, classificou como “extremamente preocupante” a menção feita pelo governo de Donald Trump a uma eventual resposta militar contra o Brasil. Para ele, declarações desse tipo não criam um “clima favorável” para a negociação entre os países e revelam uma tentativa ineficaz de pressionar o Supremo Tribunal Federal.
“Qualquer tentativa é inútil, porque eu acho que o Supremo agirá com independência. Agora, a ligação existe. Foi em resposta a uma pergunta sobre o julgamento. A pergunta era sobre o julgamento e ela respondeu com essas hipóteses absolutamente fora da diplomacia”, afirmou Amorim. Ex-ministro das Relações Exteriores e principal conselheiro de Lula nos temas de política internacional, ele ressaltou que é difícil distinguir o que seria “bravata ou ameaça”.
“Acho que [uma ação militar contra o Brasil] nunca vai acontecer, mas é realmente algo muito preocupante mesmo que seja bravata. É extremamente preocupante. Não ajuda a encontrar solução para as questões. É uma coisa que fica na mente do povo, não cria um clima favorável para qualquer tipo de negociação”, avaliou.
Amorim também criticou a concepção do governo Trump sobre liberdade de expressão. Segundo ele, “o que eles consideram liberdade de expressão é a desregulamentação total para as big techs fazerem o que quiserem, desde campanhas políticas até pornografia”.
Além de Bolsonaro, Braga Netto e Mauro Cid, compõem o “núcleo crucial” da tentativa de golpe os ex-ministros Anderson Torres, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira; o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-diretor da Abin; e o almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha.
O relator Alexandre de Moraes considerou o grupo uma organização criminosa, articulada para manter Bolsonaro no poder após a derrota nas urnas de 2022. Dino acompanhou o relator, defendendo penas mais duras, e rejeitou pressões externas:
“Argumentos pessoais, agressões, coações, ameaças de governos estrangeiros não são assuntos que constituem matéria decisória. Quem veste essa capa [toga] tem proteção psicológica suficiente para se manter distante disso.”

Absolutamente tudo no Brasil vira meme e não poderia ter sido diferente com o julgamento da trama golpista. A gravata de Alexandre de Moraes, os gracejos de Flávio Dino, a suposta peruca de Fux foram substituídos por imagens de Cármen Lúcia como justiceira da nação. Coincidentemente, seu voto será proferido no emblemático dia 11 de setembro, justamente em um momento de grandes tensões com o governo estadunidense e as tentativas de interferência de Donald Trump na justiça e soberania brasileira.
O voto de Cármen Lúcia será seguido pelo de Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma, encerrando a fase de deliberações. A tendência é que o placar se consolide em 4 a 1 pela condenação de Bolsonaro.
Comentários