A escultora, desenhista, gravurista, pintora, escritora e musicista Maria de Lourdes Alves Martins, ou melhor, Maria Martins, foi realmente uma mulher incrível. Desde menina dava sinais de um futuro, digamos, diferente. Gostava de acompanhar seu pai, político mineiro, senador e, mais tarde, ministro da Justiça e membro da Academia Brasileira de Letras, nas suas peregrinações eleitorais e comícios. Gostava de política.
Casou-se, muito nova, com o jurista e historiador Octávio Tarquínio de Sousa, de quem se separou em poucos anos, provocando o que, na época (outros tempos), foi um escândalo. Na verdade, tinha se apaixonado por outro homem, o diplomata Carlos Martins Pereira e Sousa, gaúcho, colega de infância de Getúlio Vargas. Primeiramente se tornaram amigos, e perceberam que sua amizade era de um tipo especial, que envolvia companheirismo, confiança e várias outras coisas.
Começava a Era Vargas. Seu marido foi nomeado embaixador no Japão, depois na França, na Bélgica e nos Estados Unidos. No Japão, cresceu seu interesse pela arte e aprendeu a modelar terracota, mármore e cera perdida. Desde menina tinha grande interesse por música. Tocava piano exemplarmente e também compunha, mas agora o chamado vinha das formas materiais, da escultura. Na França, começou a trabalhar com madeira e estudou pintura. Na Bélgica, passou a utilizar o bronze, que se tornou seu suporte preferido. Contudo, foi nos Estados Unidos que sua carreira deslanchou. Em 1941 teve sua primeira mostra, em Washington, e decidiu abrir seu ateliê em Nova York. Uma de suas obras foi adquirida pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Vieram exposições individuais nessa cidade, em Paris e no Rio de Janeiro. Em 1951 participou da primeira Bienal de São Paulo – estando também nas seguintes e recebendo o prêmio para a melhor escultura nacional na edição de 1955.
A embaixatriz brasileira passou a fazer grande sucesso no mundo todo, particularmente sua “série amazônica”, marcada pelo expressionismo. Justamente por isso atraiu a atenção de André Breton, o escritor francês, autor do Manifesto Surrealista, e, com ele, de vários outros expoentes desse movimento, como Max Ernest e Marc Chagall. Tornou-se grande amiga deste último, bem como de Picasso e Mondrian.
Ah, e também de Marcel Duchamp, que a considerou Maria Martins como o grande amor da sua vida. Bem, é preciso dizer que Carlos e Maria, os senhores embaixadores do Brasil, tinham, desde sempre, uma relação aberta. Na Europa e em Nova York isso não era problema de ninguém, e muito menos deles, que, como contam seus biógrafos, gostavam de partilhar, um com o outro, suas aventuras. No Brasil, essa relação “aberta” incomodava a algumas pessoas, mas, como dizia Maria Martins, em francês, tampis, dane-se… Ah, e por curiosidade, cabe dizer, sempre de acordo com seus biógrafos, que Maria também um romance com il Dulce, Benito Mussolini.
Com efeito, Maria e Carlos Martins tinham uma relação pautada pela solidariedade e pelo apoio mútuo e incondicional. O embaixador não se incomodou, por exemplo, que a esposa estabelecesse seu ateliê em Nova York e estivesse com ele apenas aos finais de semana, enquanto seu posto, obviamente, era na capital, Washington. Ao contrário, apoiou-a incondicionalmente – até mesmo quando ela decidiu viajar até a China, para entrevistar Mao Tsé-Tung e, num ímpeto jornalístico, fazer reportagens entusiasmadas sobre o comunismo na China.
Essa relação era bem diferente da que Maria teve com seu primeiro marido, que, como disse, era o jurista e historiador Octávio Tarquínio de Sousa. À propósito, sabem quem foi ele?
Bom, isso é uma outra história… Otávio Tarquínio de Sousa foi, por sua vez, uma figura bem interessante da vida intelectual brasileira da primeira metade do século XX. Nascido no ano da proclamação da República, fez parte da geração intelectual de Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda, sendo um desses intérpretes do Brasil que tanto influenciaram na cultura, nas ciências sociais e na política do país.
Mas, sabem, pensando aqui comigo, apesar da importância de Octávio Tarquínio de Sousa e de seu relativo esquecimento hoje em dia, acho que vou seguir, esta crônica, já que tanto falei de uma mulher incrível, falando sobre outra mulher incrível, a segunda esposa de Octávio, a escritora Lúcia Miguel Pereira. Uma história leva à outra, não é mesmo?
Lucia Miguel Pereira era mineira de Barbacena. Era filha do médico sanitarista Miguel da Silva Pereira. Nasceu em 1901.
Foi uma influente crítica literária, biógrafa, ensaísta e tradutora brasileira. E quando falo influente não estou brincando. Talvez tenha sido a mulher intelectual brasileira mais respeitada nas décadas de 1940 e 1950. Desde que seus primeiros textos, críticas literárias publicadas em jornais e revistas, surgiram, no final dos anos 1920 – quando ela ainda tinha 17, 18, 19 anos, chamou atenção – numa sociedade profundamente machista e patriarcal.
Consagrou-se como biógrafa de Machado de Assis, sendo, até hoje, um marco dos estudos machadianos. E também escreveu bastante sobre Eça de Queiroz. Ah, e a sua História da Literatura Brasileira – Prosa de Ficção – de 1870 a 1920 (José Olympio, 1950) é leitura clássica dos estudos literários. E o que ela fazia de diferente? Bom, primeiramente havia a sua erudição, que era fascinante. Em segundo lugar, sua abordagem analítica, marcada pela percepção aguda dos diferentes contextos sociais brasileiros e dos conflitos entre eles. E, para completar, sua coragem em desafiar os cânones, os modelos e, sobretudo, a intelectualidade masculina.
Nos anos 1990 a editora Graphia, em parceria com a Biblioteca Nacional, publicou dois volumes com seus textos, A Leitora e seus Personagens e Escritos da Maturidade. Porém, infelizmente, sua vasta correspondência com muitos intelectuais, brasileiros e estrangeiros, se perdeu, bem como todos os seus textos inéditos… É que ela havia recomendado à família que, em caso de sua morte, todos os seus escritos inéditos só poderiam ser publicados com autorização do marido e que, na falta deste, deveriam ser incinerados. Como ambos morreram juntos, num terrível e famoso acidente aéreo, o Desastre Aéreo de Ramos – motivado pela colisão de uma aeronave de treino de pilotos da FAB com um Vickers Viscount da Vasp, causando a morte das 32 pessoas que estavam neste último e de mais 10 pessoas no solo -, ocorrido em 1959, a família seguiu à risca as instruções e queimou todos os seus textos e cartas pessoais.
Termino hoje por aqui. Termino pensando em como Maria Martins e Lúcia Miguel Pereira foram duas mulheres fabulosas, ambas bem à frente de seu tempo e, cada uma delas, corajosa para enfrentar os valores então dominantes. Evidentemente vinham de mundos sociais bastante privilegiados, mas, igualmente, de mundos pautados por convencionalidades que, ambas, desafiaram. (Na imagem: Maria Martins, com uma de suas obras)
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