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Em tempos de carnaval recente, comecemos com uma marchinha:

Um lindo apartamento

Com porteiro e elevador

E ar refrigerado

Para os dias de calor.

Madame antes do nome

Você teria agora….

Agora, na verdade, entra o refrão, que certamente lembrará vocês de qual marchinha estou falando – se, antes, a não reconheceram;

Ôôôô Aurora.

Se você fosse sincera,

Ôôôô, Aurora.

Veja só que bom que era,

Ôôôô, Aurora.

Composta por Mário Lago e Ataulfo Alves, foi o grande sucesso do carnaval de 1942, provocando imensa reflexão no país: o que significava, afinal, sobretudo numa relação amorosa, sinceridade?

E o que significa sinceridade, no contexto do carnaval? Época de excessos e de imanência, bem como de pouca reflexividade, o carnaval impunha limites ou não, afinal, à virtude da sinceridade?

De certa maneira, toda a nação indagava sobre a sinceridade do decreto do presidente de Getúlio Vargas de semanas antes daquele carnaval. O famoso decreto de 8 de janeiro, por meio do qual o país rompeu relações diplomáticas com a Alemanha, o Japão e a Itália. A opinião pública forçara o decreto, mas Vargas mal disfarçava seu apreço pelo Eixo. 

E muita gente pulou o carnaval de 1942 pensando na sinceridade de Vargas enquanto berrava pelas ruas: Se você fosse sincera, Oôôô, Aurora. Nem precisa dizer que Getúlio ficou possesso ao ser associado à tal Aurora.

No mesmo ano, em Belém, indagando a si mesma a respeito do significado do termo, no contexto de seu casamento,  Edileuza Mangueira Caridade – que é um codinome dado pelo escritor Haroldo Maranhão, no romance Rio de Raivas, para pessoa real e de quem bem sabemos a história, terminou um casamento convencional na modorrenta Belém de então e migrou para a capital federal, tornando-se vedete, “garota do Alceu”, na revista O Cruzeiro, “certinha do Lalau” e uma das pessoas mais belas, desejadas  e bem pagas do país. 

Sua decisão de acabar o casamento e mudar de vida se deu, justamente, durante o Carnaval daquele ano. O marido fora sem ela para um baile do Pará Club, clube famoso na época e se engraçara com uma descarada (termo que utilizaram para informar-lhe da história). Edileuza tirou o madame de antes do nome e, aos 24 anos, escandalizando uma certa Belém, jogou o casamento para o alto e foi morar no Rio. Oôôôô…

Mas, voltando a Vargas, tantas foram as dúvidas sobre a sua sinceridade política (creio que a Alemanha também as tinha) que acabou por declarar guerra ao Eixo – embora somente a 31 de agosto daquele ano. E, não satisfeito, mudou, em outubro desse ano, a  moeda nacional – também ela, coitada, sofrendo de imensa crise de confiança. Em decreto de 5 desse mês, matou o mil-reis e substituiu-o pelo cruzeiro, como para dar fidedignidade (e confiança) ao valor do país, naquele mundo em guerra.

Guerras, casamentos e moedas são coisas que, afinal de contas, necessitam de confiança…

E já que estamos falando de confiança, do cruzeiro e do ano de 1942 falemos, também, sobre a revista O Cruzeiro, publicação do grupo de comunicação Diários Associados, que começara a circular em 1928 mas que, nesse ano de 42 daria uma guinada na sua história, inovando editorialmente e passando a valorizar, mais do que já fazia, e de uma forma inusitada, as imagens fotográficas. O Cruzeiro já era, em 1942, uma revista importante, com uma tiragem de 48 mil exemplares. Porém, com o novo projeto editorial começaria a crescer como nunca antes, na história da imprensa brasileira, vendendo progressivamente e alcançando a quase todo o território brasileiro, a ponto de imprimir mais de 300 mil exemplares apenas cinco anos depois.

Em O Cruzeiro, Edileuza Mangueira Caridade (sempre lembrando que é seu pseudônimo no romance Rio de Raivas), figorou – como dissemos acima – na qualidade de “Garota do Alceu”.

Bom, talvez vocês não saibam da importância disso e nem do impacto dessa seção, na referida revista. Eram ilustrações, ora ousadas, ora instigantes, feitas pelo brilhante artista gráfico Alceu Penna, em todas as edições da revista e que expressavam a vida moderna no país, os padrões éticos e estéticos da juventude – ou, ao menos, uma idealização sobre o que essa juventude deveria expressar e ser. A seção circulou, em O Cruzeiro, entre 1938 e 1964. As imagens mostram moças em situações quotidianas, mas com certo apelo erótico, com textos complementares escritos por A. Ladino (vejam a subliminaridade do pseudônimo) – que, na verdade, era o jornalista Edgar Alencar e, anos mais tarde, a partir de 198, passaram a ser feitos por Maria Luiza Castelo Branco e, ainda, Millôr Fernandes e o famoso Lyto, ou seja, A. de Accioly Neto. 

As “Garotas do Alceu” não eram uma fórmula nova. Na verdade, eram inspiradas pelas Gibson Girls, as Pin-ups do The Saturday Evening Post. Mas o sucesso foi tão grande que a seção acabou ganhando vozes e sendo levada para a Rádio Tupy.

Bom, fiquemos por aqui, que tarda e tenho que tomar o trem para Bragança. Depois eu conto mais.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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