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Conta-nos Suetônio, o grande historiador romano, que o imperador Vitélio, ou melhor, Aulus Vitellius Germanicus (15 a 69 d. C.) não conseguia se impedir de ir devorar as carnes deixadas em sacrifício nos altares de seus palácios. Acha um desperdício não aproveitá-las. Furtivamente, acompanhado de dois ou três escravos, penetrava nos espaços sagrados, de madrugada, para roubar nacos daquelas preciosidades que ficavam sendo assadas em fogo lento, como um churrasco, para que os deuses despertassem pelo olfato e viessem, espiritualmente, comê-las. Na dúvida se os deuses apareciam ou não para dar conta daquelas delícias, o imperador dava conta do que podia. Ficou conhecido pelo apetite e pela crueldade – embroa não bessa ordem.

Suetônio não o recrimina. Ao contrário: faz-nos saber que Vitélio estava valorizando a culinária tradicional de Roma, aquela feita no campo e que assava carnes em fogo brando, quase sem temperos, contra a gastronomização praticada nos palácios, com sua cozinha elaborada e cheia delicadezas que, não raramente, tirava o gosto da comida.

O imperador apenas queria um bom churrasco, estou convencido, mas havemos de considerar que, de fato, ele era glutão, um gulosus – a palavra em latim para glutão, termo que, em português, evoca, como sabemos, alguém mais intenso – digamos assim – que um simples “guloso”.

Suetônio, sempre atento para os que os romanos comiam, gostava de dar notícias sobre os bons garfos. É um dos historiadores que melhor no dizem sobre Gavinos Apicius, o primeiro gourmet celebrado da história. Embora saibamos que houve ao menos três personagens com esse nome, todos eles gulosos célebres, um querendo imitar o outro, um deles, o segundo, nascido em 25 a.C., sobressai. Além de Suetônio, Tácito, Plínio e Sêneca também falaram sobre ele.

E o mais antigo livro de cozinha da história conhecida foi-lhe atribuído. Esse livro, escrito no século I d. C. e recompilado, com inovações, nos trezentos anos seguintes, foi publicado, em VCeneza, em 1498. Ele reunia receitas atribuídas a Apicius e teve muitos nomes ao longo da história. Primeiramente, chamou-se Ars magirica (pronunciado ars maguírica). Arte mágica? Não: magirico (maguírico), em grego clássico, significava “cozinheiro”. Arte do cozinheiro (sim, a palavra “mágico” e a arte de “fazer mágicas” vêm do termo cozinheiro e das suas habilidades em transformar os alimentos…). Mais tarde, ficou conhecido como Apicius culinarius e, depois, como De re coquinaria libri decem (Os dez livros da cozinha) ou, simplesmente, De re coquinaria.

E por falar em glutões, because one story leads to another, passemos a Churchill, o Winston, que reprovou seriamente o propósito do deputado britânico, líder trabalhista e diplomata Stafford Cripps de não se alimentar em excesso para manter a linha e a saúde.

Churchill disse, a seu respeito: “Ele possui todas as virtudes que eu execro e nenhum dos vícios que admiro”.

Tratava-se de Churchill sendo Churchill, com suas frases ferinas e cheias de bom humor.

De resto, mesma por mesa, cabe lembrar que Stafford Cripps morreu em decorrência de problemas estomacais.

Uma das filhas de Stafford chamou-se Peggy Cripps. Foi uma conhecida escritora de livros infantis, mas ficou realmente famosa quando se casou com um aristocrata africano, de Gana, chamado Nana Appiah – sujeito pertencente à dinastia dos Ashanti, de Gana, Niger e Nigéria. Um filho deles, o filósofo Kwame Appiah, é professor emérito da universidade de Princeton, sendo especialista em estudos culturais e literários e autor de um livro considerado, pelo The New Yourk Reviw of Books como uma dos mais importantes da sociedade contemporânea, “Cosmopolitanism: Ethics in a World of Strangers”.

Nessa obra, Appiah menciona a alimentação como um exemplo de como culturas diferentes podem interagir, influenciar-se mutuamente e gerar conexões significativas. Appiah utiliza o exemplo da comida para ilustrar um aspecto central de sua visão cosmopolita: o intercâmbio cultural e a valorização de diferentes tradições, sem que isso implique uma hierarquização ou imposição de valores.

Para ele, o ato social de apreciar a alimentação diferente, a alimentação do outro, é um ato civilizatório. Nesse sentido, as trocas alimentares mostram como nossas diferenças culturais não precisam ser barreiras, mas podem ser pontes para o diálogo e o entendimento mútuo.

E, isto dito, retornemos a Chruchill.

Vocês sabem qual a melhor comida, para ele? Era um clássico britânico, o sunday roast, com molho gravy, batatas e cenouras. Por sunday roast entenda-se o assado de domingo: carne vermelha suculenta. Por molho gravy, entenda-se um molho espesso, feito do aproveitamento dos sucos liberados pelas carnes durante o cozimento, posteriormente combinados com farinha ou amido e, eventualmente, enriquecidos de vinho tinto. Ele é frequentemente servido com carnes assadas, como peru, carne bovina ou frango, e acompanhamentos como purê de batata.

Vários romances e contos mencionam esse tal molho gravy. Por exemplo, em “A Christmas Carol” de Charles Dickens, publicado em 1843, o gravy é descrito como o elemento que reforça a ideia de fartura e o espírito de Natal. Trata-se de um desses rituais gastronômicos de convivência – e daí seu papel nos almoços dominicais.

Mas, retornando a Apicius, cabe dizer, não sei se sabem, que ele se suicidou por medo de morrer de fome, depois de ter gasto, apenas com comida, ao longo de anos, uma fortuna de cerca de cem milhões de sestércios. Algo que daria para equipar uma armada inteira.

Juvenal, o grande autor romano, o execra. Considera Apiucius como um devasso, sempre pronto para seduzir a juventude pelo paladar. Ateneu – autor romano menos conhecido – por sua vez, tem Apicius em elevada espera. Considera-o como um sinônimo de sabedoria e refinamento. Por sinal, num livro desse autor, chamado “O banquete dos sofistas”, agrega algumas receitas do célebre Apicius.

Há uma de pé de camelo verdadeiramente assustadora, mas o que salta aos olhos é o o uso abundante do garum, um tradicional condimento romano que fazia as vezes do sal.

O garum, ou garo, era um compósito feito com sangue, vísceras e outras partezinhas de peixes, notadamente do atum e da cavala, mas também de crustáceos, moluscos e outros peixes esmagados. Tudo isto era deixado em salmoura por uns dois meses e, então, era aquecido e utilizado, temperando as mais variadas carnes, não apenas frutos do mar ou peixes, mas mesmos a carne de boi, de frango e de caça. De que se sabe, o garum já era usado em Atenas antes de V a.C. e, em Roma, foi produto de luxo, muito caro e cobiçado.

Ficamos por aqui. Vida longa à breve arte.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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