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Ruy Barbosa é uma dessas figuras da política brasileira que sempre dividiu o país – sobretudo em seu tempo de atuação. Meio país o glorificava e a outro meio país o odiava. O jornalista R. Magalhães Junior, membro da Academia Brasileira de Letras, fustigou-o no seu livro Ruy, o Homem e o Mito, lançado em 1964: “Embora homem de inegável talento e cultura, era ele um político entranhadamente conservador, ao mesmo tempo ambicioso, comodista e inconstante, omisso em seus deveres parlamentares, sem real capacidade de liderança, tão longe de suscitar devoções duradouras quanto de assegurar lealdade definitiva a alguma ideia ou pessoas”.

Diz o jornalista, ainda, que, apesar desse perfil, sua atuação na Conferência da Paz, em Haia, em 1907, culminou na sua mitificação nacional – e, mais que isso, na sua mistificação.

Nas 439 páginas do seu livro, R. Magalhães Junior faz um único elogio a Ruy Barbosa: “homem de inegável talento e cultura”… Isso é fato concreto, mas, a seu favor, eu também colocaria a sua persistência. Ruy Barbosa combateu em todos os dias da sua vida – sobretudo na sua atividade de jornalista. Escreveu milhares de artigos, todos os dias, sempre defendendo causas e ideias. E esses artigos estão espalhados em todos os jornais que ele dirigiu: Diário da Bahia, O País, Diário de Notícias, Jornal do Brasil, A Imprensa. Fora isso, foi incansável nos tribunais, na defesa dos seus clientes. E, ainda, no Senado Federal, onde discursou praticamente em todos os dias de seu mandato – sendo extremamente temido quando subia à tribuna.

Sua escrita e sua oratória eram brilhantes. Fustigava os adversários e não raro convertia-os, por causa dela, em inimigos. Aliás, fazia inimigos todos os dias. Vivia plenamente a vida política nacional e, por causa disso, nunca se dedicou a escrever o que muitos esperam vem: um grande livro de história, um grande romance, um grande tratado de direito constitucional. Ruy Barbosa foi uma grande contradição: foi um grande historiador nos seus discurso e artigos, mas nunca escreveu um livro de história; foi um grande cronista, no jornalismo quotidiano, mas nunca escreveu um romance; foi o maior constitucionalista brasileiro nos debates do Parlamento, mas nunca escreveu um só livro de direito constitucional.

E por falar na arte do bem falar, na arte da oratória, porque uma história leva à outra, lembro de ter lido, no livro de Marcelino de Carvalho, A nobre arte de comer, que Platão teria comparado a arte da oratória com a arte de bem assar. Assar a comida.

O mesmo autor menciona que, segundo Salústio, ou melhor, Caio Salústio Crispo, um dos grandes historiados da literatura latina, mencionou que os romanos de seu tempo era dedici ventri – ou seja, escravos do ventre e, também, servi oratorii – escravos da oratória.

Quanto a Rui Barbosa, não me consta que era servo do seu ventre. Eu nunca soube de um “filé à Rui Barbosa”? Alguém sabe se há? E, no caso da sua oratória, penso que era ela, a serva.

Servo, ele foi, da sua vaidade. A ponto de exigir precedência onde estivesse. Entenda-se precedência como a pretensão de ser mencionado primeiro, recebido antes de outros ou de ocupar os melhores lugares em uma mesa formal. Exigia precedência mesmo auqndo não era dele a precedência.

Ah, isso me faz lembrar uma historinha interessante, de outro jornalista – na verdade, além de jornalista, fundados do grupo de mídia Time-Life – Henry Robinson Luce. Sendo marido da embaixadora norte-americana Clara Booth Luce, recebeu a notícia, por ocasião de um jantar formal na embaixada americana em Londres, de que sua condição de marido da embaixadora não lhe dava qualquer grau hierárquico e que, por isso, seria colocado no final da mesa. Na verdade, os diplomatas presentes da embaixada receavam dar-lhe essa notícia, temendo sua reação. A missão coube à secretária da embaixada, Letitia Baldrige. Ao recebê-la, a notícia, Henry Robinson Luce, com muito bom humor e com sua bem conhecida elegância, perguntou à diplomata:

“A comida no fim da mesa é diferente das demais?”

E recebeu uma ótima resposta. Disse-lhe Letitia, em tom de confidência:

“Não, e saiba que o senhor será altamente recompensado, pois estará ao lado de duas bonitas jovens”

“Diante disso, não permita ao cerimonial alterar meu lugar, de forma alguma…”, respondeu.

Por sinal, um outro diplomata norte-americano, o embaixador Spruille Braden, escreveu, no seu ótimo livro Diplomats and demagogues, que existem três maneiras de enfrentar uma situação na qual a pessoa é subtraída, num jantar, de seu direito de precedência: 1) repentinamente sentir-se mal e voltar para casa, 2) circular a mesa e, quando a anfitriã ou alguém lhe indicar onde deve sentar, responder em alto e bom tom, “Mas não pode ser” e posicionar-se firmemente atrás da cadeira que julgar ser o seu lugar e 3) aceitar o erro, mas não tocar na comida e voltar para casa logo depois que ela foi servida.

Quanto a Rui Barbosa, sobretudo depois de seu sucesso triunfal na conferência de Haia, julgava ter direito de receber a máxima precedência em todas as ocasiões. Até mesmo de ocupar a presidência da República.

Ao retornar ao Brasil, em 1910, iniciava-se o processo de disputa à sucessão presidencial. Apresentada ao país a candidatura do marechal Hermes da Fonseca, a ela se opôs fervorosamente, lançando sua própria candidatura por meio de uma grande ação que hoje chamaríamos de marketing, a Campanha Civilista, que teve enorme repercussão em todo o país. Civilista, alegadamente, porque era a campanha de um civil, em oposição à candidatura de um militar. Porém, num sentido mais profundo, civilista no sentido de civilidade – contra a brutalidade bem conhecida de Hermes da Fonseca. Era a disputa do Águia de Haia contra o Marechal de Ferro.

O marechal venceu com apoio do voto de cabresto de muitos fazendeiros-coronéis (o agro, sempre ele, nem um pouco pop), recebendo quase o dobro dos votos de Rui Barbosa. Um pouco mais tarde o águia de Haia fundou o Partido Liberal, e depois disso tem muitas histórias.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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