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Já era noite e no largo à frente da igreja misturavam-se as sombras do campanário e das árvores que o ladeavam. Ele estava lá, sentado num dos degraus da escadaria que circundava o templo, elevando o prédio não mais que um metro acima do nível da rua. Diante dele um copo descartável de papel onde alguns transeuntes, dentre os poucos que pareciam notá-lo, depositavam as moedas que tinham nos bolsos ou, ocasionalmente, uma nota de pequeno valor.

Eu o vi ao longe enquanto caminhava em sua direção, mas a pouca luz não me permitiu compreender claramente o cenário. De onde estava eu o via de cabeça baixa, como a olhar para o chão, num desalento comum nas pessoas em situação de abandono. De pronto lembrei-me do personagem criado por Juan Rulfo em “Pedro Páramo”, que dizia já não lembrar do céu tamanho era o tempo em que não erguia o rosto.

– “O céu está tão alto, e meus olhos tão sem olhar, que vivia contente só de saber onde ficava a terra. Além do mais, perdi todo o interesse depois que o Padre Renteria me assegurou que eu jamais conheceria a glória. Que nem de longe a veria… Foi coisa dos meus pecados; mas ele não devia ter me dito. A vida já é dura o bastante. A única coisa que faz com que a gente mova os pés é a esperança de que ao morrer nos levem de um lugar a outro; mas quando fecham para a gente uma porta e a que continua aberta é só a do inferno, mais valeria não ter nascido…”

Meu destino ficava além do santuário, e por isso a cada passo estávamos mais próximos, eu e o homem que aparentava fitar o chão onde repousava. Cumprir meu trajeto me faria passar por ele, e por isso apalpei a algibeira da calça em busca de algum dinheiro trocado. Estava decidido a ajudá-lo, certo de que qualquer montante contribuiria ao menos para que dormisse sem fome.

Sinal eloquente dos tempos inóspitos em que vivemos é termos nos acostumado a isso; é não nos ultrajarmos ferozmente diante do que vemos a cada esquina, a cada semáforo, a cada calçada de igreja, como se os hipossuficientes que nesses locais se concentram fossem parte inevitável do contexto, como se a vulnerabilidade que os flagela fosse consequência natural da vida e, o que é ainda pior, como se não tivéssemos nada a ver com isso.

Cheguei a poucos metros dele e qual não foi meu espanto ao constatar que, em lugar do semblante abatido, sofrido e melancólico que esperava encontrar, deparei-me com um sorriso aberto e inequivocamente sincero, expressão de paz tão serena e contagiante a ponto de me deixar sem ação. Sentado no chão de pernas cruzadas, sem denotar qualquer desconforto ou mal-estar, o homem trazia ao colo, aconchegado e em evidente deleite, como se fora um bebê num regaço de mãe, um belo cãozinho vira-lata. 

Apertando o animal contra o peito, quase a niná-lo, ele coçava-lhe a barriga com indisfarçado carinho. Em contrapartida, inteiramente à vontade nos braços do dono, o cão refastelava-se em felicidade, confiança e cumplicidade, conferindo à cena uma atmosfera de ternura que poucas vezes vi nos últimos tempos.

Ao cachorro não importava se quem o acariciava era morador de rua ou habitante de palácios, se trajava farrapos ou luxuosas vestes. Não importava se sentia fome ou saciava-se em faustos banquetes, se nada tinha ou possuía riquezas infindas. Ao cão só importava que o parceiro ali estivesse, que andassem juntos por todo o dia e que chegada a noite, ao relento ou sob opulentos leitos, deitasse ao seu lado para descansar e dormir. Assim são os cães, anjos sem asas, desinteressados de tudo aquilo que se afasta da verdade, tergiversa a virtude e relativiza o amor.

Aproximei-me da dupla e não pude deixar de comentar a beleza da cena. O homem me olhou e sorriu. Disse que eu poderia afagar o cão, segundo ele muito manso e tranquilo. Não o fiz, não quis despertar o bicho daquele estado de semitorpor, misto de entrega e mansidão que só alcançamos quando dormimos ao lado de quem goza da nossa absoluta confiança. Ao invés disso, botei no copo o dinheiro que tinha em mãos e desejei-lhe boa sorte. Usando a primeira pessoa do plural para acentuar a unidade que havia ali, ele respondeu: – “obrigado, vai nos ajudar bastante.”

Segui meu caminho sentindo-me inexplicavelmente mais leve, com a impressão de ter vivido algo que já havia lido antes, só não lembrava em que livro. Esta noite, vasculhando despretensiosamente a estante, encontrei a obra e confirmei o déjà vu – o que presenciei estava docemente descrito nas páginas de “Um cão do meio caminho”, da escritora portuguesa Isabela Figueiredo, nascida em Lourenço Marques, atual Maputo, capital de Moçambique:

“O amor dos cães é calmo e silencioso. Eles confiam em mim e eu neles. Quando está frio dormem na minha cama. Vamo-nos movendo ao longo do sono, ajustando-nos. Eu volto-me, eles voltam-se, procuram um outro canto. Dormimos enroscados como na matilha. Parece que escavamos um buraco fundo na terra e estamos lá dentro uns em cima dos outros, aproveitando o calor que geramos. O meu cheiro humano é ácido e acre. O dos cães é algodão doce castanho. Uma nuvem sem arestas. Cada cão tem o seu cheiro baço, como um cobertor de terra. Juntos somos uma rede de elementos naturais que não começa nem acaba: carne ligada a madeira, ligada a carvão, a cabelo, a pelo, a pedra, a chão que incendeia o ar. Para os cães não existe aparência. Eu não sou o homem que vai ao lixo. Sou aquele que nasceu. Aquele que é, que está. É o que tenho procurado ser: o homem que nasci. Não quis ser um grande cientista nem um grande compositor ou intérprete nem o melhor cozinheiro das estrelas Michelin. Só quis que me deixassem viver cumprindo os meus percursos e horários. Tal como os cães, quero comer, dormir e correr. Não me ponham coleira nem trela. Quero andar à solta. Deve ser bom correr farejando bichos, soltando saliva, escavando com as patas a terra onde se mijou, arfando de tal forma que parecem sorrir. Furar o mato, saltar silvas e regressar a casa esgotado para saciar a sede e a fome e dormir sem peso. Quando os cães correm, não correm, voam.”

E se voam, penso eu, é porque são mesmo anjos, ainda que desprovidos de asas.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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