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Quando vemos um caso polêmico como o de Iza, é comum mulheres pensarem: como traiu uma mulher como ela? Iza, além de talentosa, é de uma beleza exuberante com padrões que subvertem, e em algum ponto mantém, o padrão estético de beleza. Contudo é preciso demarcar: em uma cultura racista como a nossa, ter uma deusa negra como referência é uma resistência viva e necessária que garante representatividade e rompimento de apenas a estética branca como bela e detentora de espaços. Logo, Iza é um ícone.

O assombramento feminino diante da traição pública revela como o dispositivo amoroso e materno se ancoram na fragilização feminina, convocando à passionalidade diante de marcas identificatórias.

Estes conceitos são desenvolvidos pela autora, doutora em psicologia, Valeska Zanello, que afirma que nossa colonização aconteceu também produzindo emoções e subjetivações, sendo as das mulheres a de introjeção e, consequentemente, submissão feminina pelo ideal de casamento do amor romântico. Em outras palavras, terão um lugar social pelo “amor”, onde serão elegidas por homens que criam hierarquias de avaliação para elas e entre elas, a partir da rivalidade feminina. Sendo um local identitário de subjetivação, gasta-se muita energia física e psíquica em prol de relacionamentos amorosos e para manutenção de corpos desejáveis. A vivência está em se manter neste lugar e padrão, dando certo status social, ao mesmo tempo que nos garantindo vulnerabilidades, pois trata-se de um poder efêmero, sempre efêmero, afinal mulheres envelhecem, engordam, vivem sob constante ameaça de serem abandonadas e “trocadas”. Quando uma mulher linda, poderosa e talentosa é traída e exposta publicamente, todas as mulheres sentem, pois o óbvio e comum vem a tona: não importa seus esforços, quem você é, mulheres estão vulneráveis.

Além disso, o caso é ainda mais dramático por Iza estar grávida, em condição específica de transformações corporais, hormonais, sociais e afins. Fase que, sabemos, necessita de apoio e acolhimento, porém, tal como a situação demonstra, são as que mais ficamos frágeis. O abandono paterno se revela em diversas facetas, essa é uma delas. Dentre as estratégias patriarcais racializadas, a objetificação feminina, o desamparo às mulheres grávidas e a divisão entre mulher para casar e as para transar são fortes armas para manutenção de relações de poder. A exploração das mulheres sustenta o capitalismo, sendo estes eixos estratégias refinadas para um aprisionamento de amarras supostamente invisíveis, já que seus efeitos se desdobram fatidicamente em dados estatísticos desiguais. Historicamente o casamento sempre foi uma estratégia de manutenção do capital e organização social.

Em um primeiro momento em solos nacionais, após invasão portuguesa, fora comum traições consentidas em prostíbulos e até mesmo, o estupro ou exploração das negras e indígenas. Com tempo, o poder se reorganiza, mantendo o pavor feminino e os privilégios masculinos em outras roupagens, embora tais práticas permaneçam e a ideia de ser casada tenha continuado se consolidando como um lugar diferenciado e de poder: a casada é a escolhida e está acima da amante – e discursos institucionais, como os religiosos, trabalham para manter as mulheres em aceitação de tal condição. E voltamos ao debate de empoderamento colonizado, com perguntas reflexivas: é possível ser esposa e mãe sem ser traída? Aceitar esse lugar social de destaque de ser esposa, é aceitar ser traída? O que acontecem com homens que traem? Por que temos tantas mães solos? Por que a maior parte das mães solos são pretas? Onde ficam as mulheres que submetem ao local de amantes? Como tratamos as amantes e como tratamos os homens que traem?

E aí, avanço em meu argumento para outro ponto: o binômio santa e puta. O ódio pelas amantes – e sim, sou adepta a noção de sororidade, embora não vá abordar aqui a defesa e também as contradições que conceito e prática requerem – representa o que em nossa sociedade? O que acontece com elas enquanto os homens seguem com verdadeiras almofadas psíquicas?

O fato do ex de Iza ganhar cem mil seguidores após a traição, nos revela que precisamos falar de masculinidade. Ao tirar a moral de caráter da amante e do ex de Iza, podemos pensar seriamente na responsabilização e nos aspectos estruturais dos dispositivos. Os homens sempre puderem ocupar espaços e se servir da objetificação feminina. Trata-se de uma socialização transgeracional, sócio histórica e que continua garantindo performances e privilégios masculinos. Enquanto não houver reflexões críticas com práticas eficazes e concretas desde a infância, permaneceremos no mesmo lugar. Enquanto os campos do saber e de profissões não pensarem e atuarem a partir de estudos de gênero, continuaremos perpetuando paradigmas que mantém violências. Logo, apenas individualizar o processo achando que o ex de Iza é mal caráter é cair na armadilha patriarcal de culpar uma pessoa, sem entender o processo, a lógica, as relações, o racismo, a mídia e todo mais.

Ao mesmo tempo, individualizando ou não, já passou o tempo dos homens não serem convocados a se posicionarem sobre como seus atos afetam e afligem as mulheres, e, mais do que isso, de serem constrangidos, quiçá coagidos, a se lembrarem que podem ser diferentes e de que precisam dar uma resposta às consequências de seus atos.
Há uma necessidade de responsabilização ética e de reparação de danos (se é que é possível reparar o sofrimento psiquico e traumático de Iza). Assim como, também não se pode ignorar o estrutural, é preciso pensar como recaem os ataques, tão diferenciados, para homens negros e brancos e como eles, diferentemente, também reagem.

Culpabilizar a amante vai na mesma direção.
Questionar como Iza foi traída por ser bela, é deslocar o ato masculino para ela, ignorando novamente as relações de gênero e seus aspectos históricos que tanto nos maltratam e que independem de nós. Ignorar os interesses econômicos e estratégicos midiáticos e a exposição de uma mulher em violência doméstica é ignorar todo esse sistema.
Fico imaginando o jornalista branco que “conta” antes pra Iza, a “obrigando” a tomar uma decisão, antes de sua divulgação e o que ele lucra com isso e com toda repercussão midiática. Não poderia ter contato a ela, sem ter publicado? O ex de Iza agradece a ele ter contado primeiro a artista, sequer percebendo o quão violento a aproveitador foi o jornalista. Seria o homem negro em relação ao branco, movido pela culpa que recai “mais forte” a ele? Como achar que foi um gesto de solidariedade, sem enxergar as amarras patriarcais?

Não esqueçamos a violência que este mesmo jornalista fez com outra mulher, quando expôs a situação de Estupro vivida por ela e entrega de bebê pra adoção, causando grande sofrimento psíquico e de exposição social, com reiterados ataques de grupos conservadores. Precisamos falar mais seriamente em políticas públicas e enfrentamento de violências contra as mulheres e destes grupos midiáticos, caso contrário, estaremos sendo fantoches manipulados que acreditam estar lutando contra um sistema, ao passo que o fortalecemos. Lembrando as reflexões de Simone de Beauvoir, precisamos entender que estratégias patriarcais sempre se atualizam. Nós, mulheres, precisamos ter direito em desenvolver o auto-amor, não ter furtado de nós os lados positivos da gravidez, e de sermos amadas e valorizadas em relacionamentos amorosos, especialmente as pretas tão mais violentadas em nosso país, por um processo histórico e atual. Amar é saúde, é político e históricos, e também ação, nos ensina bell hooks. No mais, toda minha solidariedade para mulheres, especialmente as grávidas e/ou mães, em sofrimentos patriarcais e raciais. Como sobrevivente, sei da dor em sofrer em uma gestação e do como é raro termos nossa dor validada e reparada. Sigamos atentas e unidas, mulheres, e lutemos por representantes da lei feministas, para que possam amparar nossas lutas que sim, são diárias.

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

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