– Eu acho que deviam divulgar todo dia o tanto de gente que nasce -, disse o João, encostado no balcão, bebericando num daqueles copos baixos de boteco em que a cerveja parece sempre mais gelada. – A gente devia saber quanta gente nasce, pra saber se mais nasce gente do que morre. Era um jeito de ver notícia boa, até porque notícia boa parece que morreu também, ou então parece dinheiro, ninguém quer dar.
João andava cabisbaixo, indignado com tanta notícia ruim. De manhã, de tarde, de noite, e até de madrugada, não saía uma notícia boa, salvo quando se dizia que alguém ganhou na loteria, mas aí não valia, porque a notícia só era boa pro ganhador.
– Deixa disso; pra que tu queres saber quanta gente nasce? Parece até que estás querendo saber o que o povo anda fazendo de noite, antes de dormir -, gracejou Tonho, o balconista velho, magro e curvado que atendia João desde que começara a trabalhar na mercearia.
– Tá doido Tonho, eu lá quero saber o que o povo faz ou deixa de fazer. Isso não me importa e nem me diz respeito. Só quero saber se nasce mais gente do que morre.
– João, eu vejo mais criança do que velho, vejo mais mulher prenha do que velório, e acho que vendem mais fraldas do que caixões. Por isso acho que nasce mais gente do que morre.
– Taí Tonho, eu não tinha pensado nisso. Tu andas estudando, é? Estás ficando sabido noutras coisas, e não só nas somas que fazes, essas aí que a gente nunca entende e que sempre dão mais do que a gente tem no bolso.
– É a carestia João, não são as minhas contas. É que nasce mais gente do que morre, e aí tudo vai ficando mais caro.
– Bora mudar de assunto Tonho. Me dá mais uma, mas não soma a data do canhoto. Deixa de pilantragem que eu ainda sei fazer conta.
– Sabe nada, não sabes nem se nasce mais gente do que morre.
– Porra Tonho, já disse pra gente mudar de assunto. Uma coisa posso te dizer, tem mais buraco e lixo em Belém do que gente que nasce e gente que morre, somado.
– Taí João, nessa tu me ganhaste. Nós tamo igual tábua de pirulito.
– Tu estás velho mesmo, égua. Essa é do tempo do raspa-raspa.
– Velho é o mundo João, velho é o mundo.
– Tonho, o mundo é mesmo velho, mas acho muito vago tu dizeres isso. Deverias te referir a algo em particular, algo bem velho mesmo, tipo a Sé de Braga, que foi construída no Século XI. Isso sim, é fácil de ver que é realmente velho.
– E desde quando tu és entendido de história? Que pavulagem é essa de Sé de Braga? questionou o atendente cujas costas estavam cada vez mais curvas, quase a lembrar as do Quasimodo de Victor Hugo, acumulando o peso da idade e a obrigação de tanto se abaixar no dia a dia da mercearia.
– Não Tonho, eu realmente não sei nada de história, mas essa eu aprendi porque ouvia muito um amigo dizer, quando mencionava uma coisa antiga, que aquilo era mais velho que a Sé de Braga. Eu ouvia e ficava pensando no quanto deveria ser velha a tal Célia Braga. Um dia resolvi perguntar e passei o maior vexame.
– E quem é Célia Braga, João?, perguntou Tonho.
– E eu sei lá, acho que não existe nenhuma Célia Braga, ou então existiu e de tão velha virou visagem, respondeu João, emendando uma escandalosa gargalhada.
– Nisso aí eu não me meto. Não gosto de conversa de visagem.
– Tens medo Tonho?
– Não, mas respeito. E acredito que, diferente dessa tua amiga Célia Braga, visagem existe de verdade.
– Será? Nunca vi nenhuma.
– Eu também não, mas um amigo meu que morou muitos anos num famoso edifício de Belém me contou que lá tem umas. Parece que são de umas pessoas que se mataram por lá, que se jogaram lá de cima. João então tomou um longo gole da cerveja que Tonho lhe servira, e passou a olhar para longe, pensativo, como a imaginar as tais visagens do edifício que ganhara fama como o mais alto da cidade, título que já não ostentava mais. Tonho ocupou-se de outros clientes, mas nenhum deles lhe dava a mesma atenção. Com João, embora fosse grande a diferença de idade, ele tinha uma relação de afeto. Era como se João fosse o menino Manolin e ele, Tonho, fosse o velho Santiago do conhecido romance de Hemingway, que aliás ele tinha lido há pouco tempo, numa edição amarelada comprada num sebo ali por perto do Teatro da Paz.
O balcão era comprido, feito de uma prancha de maçaranduba que dava gosto de ver. Inteira, bem talhada, bem cortada, encaixada na mercearia como pouca coisa ao seu redor. Tonho a admirava, a limpava com carinho, passando-lhe sempre o pano que trazia sobre os ombros, como quem acaricia algo que ainda vai se transformar em saudade. Ele sabia que um dia iria embora, tal como todos que ali estavam, João inclusive, e que aquela peça de madeira ficaria, pronta para testemunhar uma outra geração.
João então voltou a si, num repente, e disse a Tonho que tinha refeito as contas, e que voltara a ter dúvidas. – Tonho, rapidinho falamos da Célia Braga e das visagens do edifício. Essa turma toda entra do lado dos que já morreram. Fizeste um discurso bonito, falaste de mulheres prenhas e de fraldas, e eu até me aliviei, julgando que o problema estava resolvido. Mas agora, refazendo os cálculos e colocando as visagens do lado certo da conta, voltei a crer que morre mais gente do que nasce. Percebes a lógica?
Tonho ouviu, contemplou mais um pouco aquela enorme prancha de maçaranduba, olhou pra João e disse, cheio de ternura: – João, tu precisas namorar mais e filosofar menos. Vai por mim. Na tua idade filosofia é poesia, já dizia minha vó, antes mal acompanhado do que só.
– Porra Tonho! Agora vais atacar de Erasmo Carlos? Não dás mais conta de posar de Tremendão. Vou sentar ali perto da porta, na mesa da calçada. Me leva lá mais uma cerveja gelada, e também um naco daquela mortadela do português, por favor.
– É pra já João, é pra já… Toma, eis aqui a tua cerveja e a mortadela que pediste. Te refastela. Mas vê se para de me censurar. Ora me chamas de velho, ora me dizes que já não dou conta de imitar o Erasmo. Estás tal qual o Torquemada, e daqui a pouco me jogas na fogueira. Pois fica sabendo que o Erasmo foi além dos 80 anos, e que eu ainda tenho chão até lá…. Tonho falara isso tudo com um ar grave, solene até, e João compreendeu que o havia magoado.
– Tonho, me desculpa. Estava apenas arengando contigo. Sabes que moras no meu coração. Não há manhã de sábado que eu não passe por aqui para te cumprimentar. Vê bem Tonho, cerveja e mortadela se encontra em muitos lugares, e se venho sempre aqui é para ser atendido por ti.
Tonho lembrou do carinho de Manolin por Santiago, e sentiu-se inserido na estória do velho pescador. As palavras de João acalentaram-lhe o coração: – Obrigado João, pela sua consideração. Aprecio muito que venhas aos sábados e deixo sempre algumas cervejas no freezer logo que chego, bem cedo, para que estejam bem geladas quando chegares. É uma boa forma de mostrar apreço, não?
– Se é Tonho, se é!
– Mas olha João, leva a sério o que te disse. Arruma uma namorada. Precisas te divertir mais, precisas arejar a mente, e nada melhor do que namorar. João riu e voltou a fustigar o amigo atendente: – Eita Tonho, tu por acaso tens experiência nessa área? Não imaginava; pensei que eras um solteirão convicto, e que já não pensavas nessas coisas.
– Pra namorar não tem idade João, basta ter saúde. E afinal de contas, se até o Padre Amaro era dado aos namoricos, por que eu não poderia ser também?
– Porra João, essa fofoca é de primeira. Quem é esse Amaro, em que igreja celebra missas?
– Larga de ser desrespeitoso João. Padre Amaro não existe, é apenas um personagem do Eça de Queiroz. Está num livro que comecei a ler há poucos dias. Consegui trocar lá no sebo, levei dois antigos que já havia lido e troquei por este.
– Entendi, disse João. Ele deve ser da turma da Célia Braga. A gente fala deles mas eles não existem. E aí repetiu a sonora gargalhada.
– Lá vem de novo a tal Célia Braga. Hoje estás mesmo difícil, com ideia fixa em gente que não existe e em contar o número de mortos e de nascidos. Eu hein, parece até mania.
– Não Senhor; retrucou João. – Eu tentei mudar de assunto; falei da enorme quantidade de buracos na cidade, estás lembrado?
– Sim, sim, foi quando falei na tábua de pirulitos e me chamaste de velho.
Nisso novos clientes iam chegando. Um casal, três crianças e uma senhora idosa que aparentava ser avó da criançada. Pediram que Tonho os fosse atender, e ele de pronto voltou para trás do balcão. Antes, porém, disse baixinho para João: Estás vendo? São três guris e uma vovó. Três pra um. Taí a prova. Nasce mais gente do que morre, e ponto final. João ficou olhando a cena, refletindo sobre o que Tonho lhe dissera. Mordiscou um pedaço de mortadela, tomou um gole de cerveja e se ajeitou na cadeira, buscando uma posição mais confortável. Cuidou também de puxar sua mesa um pouco mais para a direita, de modo que ficasse abrigada sob o telhado da mercearia, onde a chuva não pudesse atingi-lo, caso chovesse.
Tonho percebeu, olhou para o céu e disse: – João, não está com cara de chuva. Por que essa arrumação?
– A conversa está boa Tonho, e acho que hoje me demoro por aqui. Tonho sorriu, foi até a mesa do amigo e nela passou seu pano de ombro, secando o suor gelado que escorria da cerveja. – É João, se vais demorar, vou ver então como está o leitão. Assim já garanto teu acepipe predileto.
– Meu o que? Que diabo é acepipe?
– Procura aí na internet, pergunta aí para o teu celular. Não é ele o oráculo de vocês jovens?
– Vou procurar mesmo. Acepipe, isso é bem palavra de velho.
– Velho é o mundo João, já te falei.
João riu, sentiu-se feliz na presença do atendente, sentiu-se feliz por estar ali, numa manhã simples de sábado, na merceraria do canto de casa, lembrando das tábuas de pirulitos, da Sé de Braga; da Célia Braga e do Padre Amaro. Enquanto Tonho voltava para trás do balcão, ele descobriu pelo celular o significado da nova palavra velha e gritou: – Tonho, já sei o que é acepipe. Quando estiver pronto pode trazer, com bastante cebola!
O atendente sorriu mais uma vez, puxou novamente o pano dos ombros arqueados e com ele acarinhou a bela madeira do balcão.
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