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As subjetividades digitais se constroem no ambiente da corrida do ouro pela remuneração de conteúdo em plataformas digitais, como aspiração à atividade de influenciador/a digital. Tik tok, YouTube, Facebook, Instagram e kawai, são exemplos de plataformas digitais que remuneram criadores de conteúdo digital, sobretudo pelo compartilhamento de vídeos, onde se veiculam saberes, fazeres e rotinas variadas de pessoas interessadas nesse nicho. 

Observo que, para além do universo dos criadores de conteúdo profissionais, habituados a trabalhar com assessoria especializada em marketing digital e marketing visual, por onde transitam  influenciadores  com milhares de seguidores e carreira digital consolidada, há o ambiente das pessoas comuns, que descobriram nessa atividade uma maneira de entrada de dinheiro em seus orçamentos. É este público específico que tem me chamado a atenção. 

Os grandes criadores de conteúdo digital no Brasil compartilham em suas redes sociais uma espécie de enriquecimento meteórico, evidente nos conteúdos de suas rotinas no ambiente digital. Dessa partilha de experiências, ocorre a busca por esse pretenso   Eldorado das mídias digitais, pelo qual, para buscar pertencimento e remuneração, pessoas comuns passam a compartilhar digitalmente suas vidas privadas, portando apenas um sonho e uma câmera de celular e construindo subjetividades – personas – atraentes para esse ambiente.

Reflito aqui especificamente sobre a criação de conteúdo para as plataformas mais conhecidas: YouTube, Instagram, Facebook, Kawai e Tik Tok. Nesses ambientes transitam conteúdo visual de grandes influenciadores digitais ao lado de vídeos caseiros de pessoas comuns, do povo, que se aventuram no ambiente digital em busca de receber algum dinheiro pela divulgação de material digital retirado de suas rotinas. A ordem das plataformas digitais é batalhar pesado pelo número de visualizações e engajamento nesses conteúdos. Nessa corrida maluca, a meta é viralizar o conteúdo, ou seja: ampliar ao máximo o alcance do material digital, por meio de visualizações, curtidas, comentários e compartilhamento do material. É assim que o mercado negocia nosso tempo, nos mantendo conectados e presos ao mundo virtual. 

Personas digitais 

Nessa febre do ouro verde (algumas plataformas remuneram em dólar), pessoas comuns constroem subjetividades digitais, através das quais se investem em papeis variados (caricaturas de ocasião) para gerar conteúdo coletado de suas rotinas, a ser “vendido” no ambiente digital. Essas subjetividades se manifestam dentro dos relatos de vivência reproduzidos nesses conteúdos, ora semelhantes às experiências da rotina desses sujeitos, ora novelizadas ou narradas com senso de humor (não raro, de péssimo tom, aviltando o outro). 

Registro de vida 

Com uma câmera de celular e um sonho, pequenos criadores de conteúdo compartilham cenas de suas rotinas através da estratégia do registro de vida. Nesse segmento, as subjetividades digitais produzem conteúdo com base em atividades do dia a dia. O compartilhamento de cenas das tarefas da rotina com o trabalho doméstico é bastante comum nesta modalidade. É curioso como a sensação de observar a vida de pessoas estranhas alimenta esse cenário de voyeurismo, pelo qual os comentários, as curtidas e os compartilhamento desses materiais visuais são um marcador de socialização virtual. Observo que, em muitos casos, os seguidores desses pequenos criadores de conteúdo passam a interagir e a intervir na vida real dessas pessoas, enviando-lhes presentes (que chamam de recebidos) e quantias em dinheiro, a partir das carências materiais que identificam nesses relatos de experiências. 

Em um desses registros de vida, acompanhei a história de uma família marajoara, vivente da várzea dos rios, que morava em uma palafita sem paredes. Os seguidores dessa família orientaram a criação de uma vakinha (doação em dinheiro) virtual para a construção da casa dessa família, que hoje se encontra em fase de acabamento, inclusive com painéis de energia solar! Os seguidores, que assistem aos conteúdos e se engajam a eles, manifestam opiniões e, em muitos casos, interferem mesmo na rotina dessas pessoas, em um curioso jogo de sociabilidade dirigida. Há situações concretas em que, através dos comentários negativos nos conteúdos, mudam-se práticas das vidas desses sujeitos digitais. É muito interessante essa dinâmica de vida, por vezes até edificante. 

Novelinhas 

É muito comum também a estratégia de novelizaçãonesses conteúdos. As novelinhas seguem essa dinâmica de vídeos caseiros, onde os atores, pequenos criadores de conteúdos, encenam situações de vida, cujos temas são subtraídos da vida cotidiana, e variam entre traições conjugais, relações familiares conturbadas, romances proibidos e situações cômicas. As novelinhas têm sido uma forma de criação de conteúdo bastante comum nas plataformas digitais, onde os criadores se sentem livres para expressar criatividade e dinâmicas sociais. Observo que as plataformas impõem regras de censura de conteúdo, pelas quais os criadores podem ser penalizados, caso violem essas diretrizes. Geralmente a pornografia é censurada. 

Negócios

É comum a utilização das plataformas digitais para a comercialização de produtos e divulgação de serviços. Os perfis comerciais são criados com a finalidade de comercialização no ambiente digital. O marketing digital de produtos e de serviços se manifesta nesse ambiente, desde os perfis altamente profissionalizados, administrados por profissionais do marketing digital, até pequenos profissionais, que oferecem produtos e serviços por meio desses perfis. 

Criticas 

Entendo que toda forma lícita de sobrevivência é válida e legítima. No entanto, nessa corrida pelo sonho de construir uma grande carreira e fama, como influenciador digital, se vão diluindo importantes aspectos da dignidade humana. Situações de vida envolvendo a intimidade pessoal (por exemplo, a rotina de um casal com diferença significativa de idade, onde a mulher é exposta às críticas negativas e ácidas dos seguidores), exposição de pessoas com deficiência, idosos e crianças, por exemplo, em situações que aviltam esse atributo da vida das pessoas, nos aguçam o olhar para esse aspecto das subjetividades digitais e para o limite desses conteúdos no ambiente digital. É relevante modular os vetores da dignidade humana a partir desses parâmetros de hiper exposição da vida de crianças, por exemplo, que não têm consciência do que representa o ambiente virtual, nessa modalidade de criação de conteúdo e formação de subjetividades digitais. Tenho certeza, no entanto, de que é para pensarmos atentamente o advento de sociabilidades marcadas pela histriônica publicização da vida privada e pela histeria da corrida do ouro no mundo virtual. 

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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