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Percebo, pelo menos, uma relação triádica no sonho: imagem, sensorialidade e mitologia (no caso uma mitologia pessoal), a perfeita combinação da arte.

Essa relação só se consolida através do conhecimento sobre nossa própria simbologia bastante subjetiva.

É como um quebra-cabeça que pode ser montado com peças que se armazenam na memória.

Digo que os sonhos servem como uma montagem que evocam cenas multifacetadas da percepção do que é importante em nossas vidas, e cada peça registra códigos e cifras desafiando nossa inteligência.

Portanto, imagens retratam simbologias pessoais, e também angústias.

O cérebro cria constantemente imagens, o inconsciente não tem leis à altura do que a parte consciente do cérebro diz que é capaz de organizar quando estamos despertos.

Talvez a grande tarefa do psicanalista seja criar analogias a partir das imagens criadas pelo consciente e pelo inconsciente: comparar imagens com a estrutura de uma linguagem verbal.

Imagens não são simbologias definidas, são símbolos se formando, eis a questão, e eis a dificuldade para se entender os sonhos, porque uma simbologia é mais fácil de ser entendida quando pertence a uma cultura e por outro lado, imagens “aleatórias” dos sonhos são mais difíceis, são mapas sendo criados para roteiros qeu podem ser decifrados.

A questão é que essas imagens são criações não apenas de nossos cérebros, são frutos da pele, do sensorial, de um sentido apurado a tudo ao redor, principalmente à violência e à percepção de inseguraranças, medos e traumas.

Não são apenas imagens da nossa subjetividade ou do nosso inconsciente, que também são estruturas à altura em tal complexidade – são respostas do nosso “ministério da defesa” particular e escondido em algum canto de nossa fonte inesgotável de criação de imagens, o nosso cérebro.

(Por isso, às vezes acordamos sobressaltados ao som de barulhos e ruídos suspeitos – o sonho funciona como alerta também, nessa conjuntura, basta lembrar do filme Apocalyto, de Mel Gibson que inicia com um indígena, recebendo pelo sonho o alerta de que sua aldeia estava sendo invadida pelos astecas em buscas de jovens para sacrifícios a seus deuses).

Sonhos são alertas, são conselhos, são códigos eestéticos, trabalhados como uma estética onírica.

Entretanto, imagens, enquanto simbologias, são redutos de arbitrariedades e nos sonhos as coisas são muito diferentes, são mais livres como no reino da arte.

Por isso, para se iniciar nos estudos dos sonhos, é melhor abandonar os feixes de simbologias prontas, aceitar a linguagem onírica como um código a ser decifrado.

Sonhou com o quê hoje? Se lembrou era importante, se esqueceu, você é que não deu a devida importância. Sonha também é um exercício de memória.

Cultivamos imagens, mas não fazemos simbologias catalogadas para simbologias pessoais, ou melhor, criamos a nossa Oníria, as nossas imagens e elas dificilmente se repetem e assim alargam e exercitam a nossa memória.

E a nossa inteligência.

Certo também que quando fazemos alguma comparação, não será uma simbologia totalmente independente da milenar cultura dos símbolos que a definirá.

Por isso, é interessante focar a atenção nas imagens primeiras, primárias ou primordiais: água, por exemplo, não pode ser descartada como símbolo de inquietação, já que a água é o elemento inquieto por natureza e tem em si a própria condição fluídica, instável.

Mudança.

Foto: underwaterinart.com

Mas, não estamos imunes às arbitrariedades.

As imagens também se fixam a um elemento determinante até porque somos animais criadores de símbolos para serem entendidos por alguma forma de linguagem.

Principalmente, por nós mesmos.

E como a linguagem é uma questão social, abrimos mão de nossas individualidades para sermos entendidos e aceitos pelos outros?

Sim.

Trata-se também de um jogo que ainda não sei até onde nosso cérebro permite-se jogar conosco.

Cada um é seu juiz e seu jogador nesse game, às vezes parecido com um jogo de vídeogame e suas fases.

Inerpretar um sonho é deveras um ato de resignação, um acordo, diante da vida que é uma partida que muda constantemente suas leis do jogo.

E a lei é a obscura linguagem do inconsciente.

Obscura ou pobre (por não ser precisa), como pode essa linguagem nos aparecer tão radiosa nos sonhos?

Tão impactante.

É comum acreditar que o inconsciente seja na sua linguagem cinética e carente de recursos ao mesmo tempo:

“[…] o inconsciente é bastante pobre em técnicas de representação daquilo que tem a dizer, limitando-se em grande parte a imagens visuais, muitas vezes precisando […] traduzir com habilidade uma significação verbal em outra, visual: projetar, por exemplo, a ideia de morte na imagem de um caixão.

De qualquer modo, os sonhos são suficientes para demonstrar que o inconsciente tem a inventividade admirável de um cozinheiro preguiçoso e mal abastecido, que mistura os ingredientes mais diversos em um ensopado substituindo um tempero por outro de que não dispõe, aproveitando-se do que tenha encontrado no mercado naquela manhã, tal como o sonho se utilizará […] dos ‘resíduos do dia’, misturando acontecimentos ocorridos durante o dia, ou sensações experimentadas durante o sono, com imagens vindas das profundezas da infância”. (Eagleton, Teoria da Literatura, p. 218).

Sonhamos com coisas impossíveis porque a vida nos mostra sua riqueza.

A “culinária” amadora do sonho,(assim me reportaria eu a teoria de Eagleton) seria suficiente para nos despertar com aquelas imagens impressionantes e ao mesmo tempo inesquecíveis, como uma tela expressionista, impressionista, cubista ou mesmo abstrata.

Não tenho pesquisa suficiente para revidar a citação do Eagleton, mas me parece que sua visão, estruturalista, binária e transitiva no sentido de movimentar do verbal ao visual, nos convida para uma revisão ao apontamento estético na linguagem dos sonhos, afinal toda arte nasce da revolta doa artista se sentindo frustrado com o seu objeto de expressão.

O inconsciente teria, a meu ver, um fluxo mais poderoso, porém menos explorado que o fluxo verbal da língua que falamos.
A linguagem dos sonhos não é a verbal e sim cinética, sinestésica, sensorial, obscura (essencialmente conotativa, do grego “conos”, obscuro), para não dizer sensorial-imagético que é a mais precisa que a linguagem verbal, muitas vezes imprecisa, fadada ao desconfiado discorrer do discurso.

Por isso, os sonhos revelam.

Cheguei aonde queria chegar: os sonhos estariam mais para a poesia, a dramaturgia, a pintura, a música, os mistérios de nossas particularidades – são nossas manifestações plásticas, como as artes.

É uma estética.

Uma Oníria, uma terminologia unindo vida e arte, uma mitologia pessoal.

O nosso inconsciente estaria mais para um artista desconhecido que nos quer revelar o seu talento de decifrador do mundo.

E para provar isso devo lembrar a impressionante quantidade de artistas e cientistas que se inspiraram nos sonhos para compor suas obras: Michelangelo, Coleridge, Borges, Kekulé, dentre outros.

Não quero dizer que os sonhos só sirvam para os artistas ou alguns cientistas.

É que os sonhos seriam linguagens artísticas mal ou bem elaboradas pelo inconsciente, como ideias, inspirações, mensagens, cifras, notas, sensações, emoções, flashes da vida, alegorias puslsante revelando a matéria marginal de nossas marginais escolhas e de insolúveis soluções despertas.

Prefiro analisar os sonhos pelas artes do que pela linguagem verbal que se estrutura pela razão logocêntrica (que também é imagética, arbirtrária, dogmática).

E na era da tecnologia?

É possível passar de uma fase para outra como se fosse o sonho esse vídeogame que me referi acima?

Acho que sim, pois algo nos sonhos deve se destacar enquanto que outras vão se apagando em nossas mentes. E tendemos a explicar nossos sonhos pela nossa linguagem consciente e pelo nosso idioma, sob o uso da memória e sua inevitável reconstrução, remodelação – e o que acontece é que o sonho foi logo desfigurado quando tentamos contá-lo.

Uma criança de seis anos me disse “eu estava sonhando e aí eu passei para outra fase…” como sonhamos várias vezes na mesma noite, entendi o que ele me quis dizer.

Através do costume que ele, enquanto um menino de seis anos tem de brincar com o vídeogame, simplesmente associou passar de um sonho para outro, naquela mesma noite, como se fosse uma fase doo jogo.

É engraçado, mas é mais ou menos assim.

O sonho é a prova de que você está vivo.

Há mais realidade, mais vontade de viver no sonho como uma autêntica prova de vida sob o necessário sono, esse alimento da alma, que nos deixa temporariamente mortos, cientificamente vegetativo, – revelando que, no fundo, precisamos – sim, viver e sentir a vida, mesmo que dormindo.

Benilton Cruz
Benilton Cruz é doutor em Teoria e História Literária, professor de alemão e do Curso de Letras-Português e Letras-Libras da UFRA, Campus Belém, autor dos livros: Olhar, verbo expressionista – O Expressionismo Alemão no romance “Amar, verbo intransitivo de Mário de Andrade; Moços & Poetas – Quatro Poetas na Amazônia - Ensaios Sobre Antônio Tavernard, Paulo Plínio Abreu, Mario Faustino e Max Martins; Espólios para uma Poética – Lusitanias Modernistas em Mário de Andrade; pesquisador e perito forense, editor do blog Amazônia do Ben; editor do Canal de Poemas No Meio do Teu Coração Há um Rio, no Youtube. Diretor da Academia Maçônica de Letras do Estado do Pará; e membro eleito da Academia Paraense de Letras.

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