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Não tenho dúvida de que existe em cada um de nós, homens e mulheres, jovens e adultos, um pouco da inquietação e da angústia de Alonso Quijano, o fidalgo espanhol nascido na região de Castela-La Mancha, cuja obsessão por causas supostamente perdidas ou socialmente invalidadas findou por levá-lo à loucura, sobrepondo o alter ego ao cidadão, transformando o personagem em algo maior que seu próprio autor.

Todos temos causas perdidas, todos enxergamos monstros onde muitos veem apenas moinhos de vento. Cada um sabe bem a intensidade das próprias dores, e por isso vive latente em nós, ainda que oculto nos labirintos da alma – armadura em riste, elmo, escudo e espada à mão -, um cavaleiro vagamundo, deveras romântico e um tanto ridículo, pronto para empreender batalhas pessoais que, vistas de fora, mais parecem sandices, devaneios, indícios da perda galopante do juízo.

Tal qual Quixote, temos todos nossas guerras inúteis, nossas lutas incompreendidas.

A minha, particular, violenta e absolutamente infrutífera, destituída da mais remota chance de êxito, é a guerra contra o barulho e tudo de ruim e pernicioso que ele contém. Sou um empertigado e burlesco Dom Quixote em obstinada contenda pelo silêncio, enxergando monstros terríveis e sanguinários em caixas de som portáteis, buzinas, escapamentos adulterados e pestilentas aparelhagens de som automotivo.

Nessa cruzada eu não poderia estar em terreno mais propício a longos e devastadores combates, no epicentro de uma hecatombe planetária de ruído, mau gosto e gigantesca falta de educação: Santa Maria de Belém do Grão Pará, seguramente uma das cidades mais hostis do mundo àqueles que tem a ousadia de considerar o silêncio um direito humano fundamental. 

Numa metrópole que normaliza carretas errantes circulando pelas ruas com som aos píncaros, usualmente música de qualidade abaixo do sofrível, inclusive em período noturno;  numa urbe que admite que qualquer um estacione seu carro, abra o porta-malas ou conecte reboques com estruturas de som não raro mais caras que o próprio automóvel, e obrigue toda a circunvizinhança a ouvir aquilo que o deseducado deseja (normalmente lixo musical); num tempo em que as festas e comemorações deixaram de ser oportunidades de convivência sadia e diversão para tornarem-se poderosas usinas de danos auditivos, não poderia haver duelo mais inútil, mais ineficaz e fadado ao inclemente fracasso.

Não obstante, imbuído de propósitos quixotescos similares aos de Dom Alonso de La Mancha, reservo-me o direito de empreender este prélio mesmo ciente de que é natimorto, estéril, falhado na origem, salvo para manter a questionável sanidade do cavaleiro sonhador. Ainda que minha voz seja solitária e inaudível, preciso exercer a liberdade de fazê-la sair da garganta, afinal, como bem disse o gênio de Cervantes: “A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que aos homens deram os céus; por ela, assim como pela honra, pode e deve aventurar-se a vida.”

Por razões de ordem clínica, neurofisiológica e psiquiátrica, é certo que o ser humano necessita de silêncio — não como um luxo cultural, mas como um requisito de funcionalidade do sistema nervoso. O córtex auditivo, o sistema límbico e o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal são ativados por estímulos sonoros constantes, e o ruído excessivo e persistente mantém o cérebro em estado de vigilância, com liberação sustentada de cortisol e adrenalina, impedindo o silêncio de atuar como um regulador fisiológico imprescindível para o descanso neural.

Afora isso tudo, o barulho gera ansiedade e fadiga, criando estados de hipervigilância altamente prejudiciais à saúde cognitiva. Em oposição, o silêncio aprimora a atenção, favorece a memória e fortalece a autoajuste emocional. Ele não é fisiológico, como oxigênio, água ou sono, mas é neurofisiologicamente indispensável.

Podemos calar ou fechar os olhos, mas não há como interromper a audição, daí porque o ruído impede o cérebro de atingir estágios profundos de concentração, repouso e regeneração mental, afetando sobremaneira processos psíquicos superiores como reflexão abstrata, avaliação moral e criação simbólica, ou seja, num único conceito, a capacidade de escuta de si próprio.

Para além da ciência, renunciar ao silêncio significa atrofiar a linguagem, reduzi-la a um processo medíocre e pouco inventivo de comunicação. A língua, enquanto sinônimo de evolução humana, não nasce do ruído contínuo. Muito ao contrário, floresce da pausa, do intervalo, daquilo que não é verbalizado enquanto respiramos, daquilo que não é dito.

Na literatura o silêncio precede e sucede a palavra, abre espaço para conexões personalíssimas que o barulho fulmina e sepulta em cova rasa. Escrita e leitura não nascem dos sons, e sim do silêncio, da escuta interior, do acesso corajoso aos subterrâneos da consciência, onde o que se encontra de mais profundo reside nas pausas, na densidade estética e nos intervalos narrativos, fecundos espaços de ambiguidade, interpretação e autoconhecimento.

Vivemos numa época em que pouca atenção damos a nós mesmos, assoberbados com amenidades, futilidades e insignificâncias. Isso se agrava ao extremo quando nos privamos do silêncio, esse espaço lúdico onde Deus se faz escutar, esse recanto de conforto e tranquilidade onde o tudo se fantasia do nada, esse tesouro que vale a pena buscar a cada dia, peleja inglória em que é preciso acreditar.

Ao nosso redor impera o alarido, o estardalhaço, não há como negar, mas segue possível manter a fé num amanhã mais ameno. Quixote sempre esteve atento a essa possibilidade, ainda que fosse sombrio o horizonte: “Sabe Sancho, todas essas tempestades que acontecem conosco são sinais de que em breve o tempo se acalmará e que coisas boas tem que acontecer; porque não é possível que o bem e o mal durem para sempre, e segue-se que, havendo o mal durado muito tempo, o bem deve estar por perto.”

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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