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Confesso que não me sinto bem em escrever sobre feminicídio. Toda vez que escrevo sobre os estopins de violência contra nós, me exige um dispêndio de energia enorme, porque eu sangro junto. Estudo gênero desde 2013, mas não tem como não se afetar ao ler notícias de violências contra nós, as minorias em direitos garantidos.


E acho que as mulheres que tem acompanhado as notícias, estudiosas de gênero ou não, me entendem.
Fora isso, tem anos que escrevo sobre a mesma pauta, as vezes, diante de picos de notícias, como nesse momento. O que também é cansativo.


Por vezes, penso se serei repetitiva com as pessoas que já estão falando ou com que eu própria já escrevi, mas me parece que quando a pauta é violência contra as mulheres é preciso insistir nas mesmas teclas, gritar até ser ouvida por alguém que ainda não foi tocado (lembrando que são muitos “alguéns”). O fato é que a onda de violência doméstica ou de feminicídio não é de agora, ou aumentou agora, sempre esteve aí.


Então, aproveitando esse espaço, gostaria de relembrar o óbvio: as violências contra mulheres são um problema de saúde pública. Dito isso, vou afunilar essa informação para dizer que os homens são um problema para saúde e vida das mulheres. E isso não é à toa. Vivemos em uma cultura que os homens foram ensinados que são eles que autorizam, legitimam, mandam, detém o poder. Numa espécie de supervalorização, que precisa ser continuamente reiterada entre pares. E disso, nenhum homem escapa.


Está, portanto, na hora de dialogarmos com os cabras. Mesmo aqueles que nunca levantaram a voz para uma mulher. Mesmo os mais sensíveis a causa, que almejam ser aliados.


Porque somente quando homens se colocarem nesse lugar, poderão se implicar para o combate as violências de gênero.


Sim, estou falando da socialização dos meninos, desde a infância. Por exemplo, pesquisa recente, realizada pela PHD+ Zooma Inc, apoiada pelo Pacto Global da ONU, afirma que 6 a cada 10 meninos afirmam ter poucas referências positivas de masculinidade com quem convivem no cotidiano. Isso significa que dentro dos lares, nas escolas, os meninos não aprendem a respeitar mulheres, a lidar com frustrações, a desenvolverem habilidades de empatia, tampouco de tarefas de cuidado e de funcionalidade. Também significa que podem estar aprendendo por mimetismo a manifestar agressividade, observar os benefícios diretos e indiretos do comodismo. Tudo isso já os leva a aprender que mulheres são objetos, mas não duvido que tenham lares em que a premissa é ensinada descaradamente, por exemplos e por ensinamentos pedagógicos.


Foram três casos noticiado em redes públicas, mas não apenas três, sabemos. Aqui em Belém, por exemplo, uma conhecida, muito querida, denunciou o espancamento do marido, negligenciado pela própria delegacia onde prestou queixa. (E o cara de posição de prestígio e semblante de “bom moço” saindo ileso até então)


Todos esses casos são marcados pelo mesmo motivo: misoginia, um verdadeiro ódio e menosprezo que resulta em tentativas ou no feminicídio. Das notícias viralizadas: O homem que não aceitou a recusa de uma prática sexual, o homem que não aceitou ser gerenciado por mulheres, o homem que não aceitou o fim da relação.


Não precisa ser muito esperto/a para entender o que está em jogo.
E parem de falar como se fossem monstros ou “outros”. Não são. São namorados, maridos, melhores amigos, parentes, pessoas comuns.


Por isso, o primeiro passo para os homens que não querem perpetuar essa lógica está em se reconhecer como parte dela. Isso invoca uma série de atitudes que está em questionar seus próprios privilégios com a masculinidade e ter a coragem e a decência de negociar com eles, a ponto de abrir mão de certas regalias, mesmo as mais sutis, como o ser brother de um amigo declaradamente abusador. Tudo isso começa desde questionar quem são suas referências, como se relaciona com as mulheres no cotidiano, como tem vivido e trabalhado suas emoções, e como tem usado seus espaços de poder. Também é preciso ter uma postura ativa diante dos pactos de silêncio entre os homens e nos grupo de homens. Homens se fortalecem entre si e não são responsabilizados por seus atos, pois raramente são punidos por suas infrações, que começam na socialização da infância. A falta de impunidade legal, mas sobretudo social, reforça os comportamentos violentos, afinal tem homem que ainda é presenteado com seus erros.

Enquanto nós, temos todo e qualquer ato julgado pela lupa da fiscalização patriarcal.
Infelizmente, nem todas as mulheres são ensinadas a como se proteger e mesmo as que são, não estão impunes de sofrerem.


Recente, brinquei no meu Instagram que é proibido ouvir músicas de naturalização de sofrimento pelo amor romântico, é que a gente recebe uma enxurrada de mensagem o dia todo pra achar normal homem abusivo. A prova disso é que 4 a cada 10 mulheres sequer consegue reconhecer de imediato que passou por uma violência, segundo pesquisa da Natura.


Outra orientação importante é: observem os homens que se aproximam de você. Não apenas pesquise antecedentes criminais, mas – como bem lembrou a querida advogada Natasha Vasconcelos no seu Instagram – “tente lembrar como as mulheres que saíram da relação foram taxadas (…) e o papel que assumiam na vida desses homens”. As “loucas” são apenas provas vivas que o homem é abusivo (e que pode afetar a saúde mental das mulheres). Não tem mistério, nem segredo, basta observar os sinais que, por vezes ignoramos.


Nunca esqueço, em uma das relações que mais me deixou marcada negativamente, a mãe do sujeito veio no início da relação me dizer que ele estava mentindo pra mim em relação a dinheiro, pra fingir ser algo que não era, e eu permaneci, pensando na época que tinha a ver com relação mãe e filho. Não preciso contar o fim, né? A reflexão é: quantas vezes fechamos os olhos e ouvidos pra permanecer e encaixar numa relação?


Esse movimento de duvidar da narrativa das mulheres é uma estratégia do próprio patriarcado contra nós mesmas. Por isso, é importante lembrar que avisar outras mulheres sobre armadilhas é importante, não é fofoca ou perseguição, é estratégia política.


A ideia que amor é dor, que existe mulher que será salva, que existe a mulher boa versus a má, é uma balela. Tudo estratégia de aprisionamento. E nenhuma de nós segue salva.
Por aqui, oriento que sigamos com nossas estratégias de sobrevivência. São leituras, manifestações na ruas, organização política , manifestos, rodas de conversas, amizades e muitas, muitas tentativas de proteção (Uber compartilhado, ligações até chegar em casa, só sair em grupo, e por aí vai).


A questão é que nossa liberdade ainda tem um custo muito alto e que mesmo com toda autonomia conquistada seguimos em risco quando tropeçamos com um homem por aí. Esse desabafo não tem um fim. É reticente. É uma solidarização com todas as mulheres que estão em sofrimento. Um abraço nas famílias que também estão em sofrimento. Nas crianças que perderam suas mães. Em nós, que sabemos que somos potenciais vítimas.


Término com a fala da Nat, que acho essencial nesse processo da nossa implicação: “Devemos estar prontas para ser o apoio de uma mulher em uma situação de violência para que ela consiga sair do ciclo. (…) devemos estar prontas para reeprender o tal amigo quando necessário, se afastar se for o caso, e denunciar se for necessário”.
Quem está pronta/o?
Sigamos.

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

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