Outro dia escrevi sobre o meu vínculo sentimental com o horário eleitoral gratuito da minha infância. Minha relação com as eleições, como mulher adulta indignada com tudo e com quase todos, é bem diferente. É muito difícil observar a literal palhaçada que muitos, mas muitos dos candidatos, fazem com a nossa cara em todos os pleitos. É revoltante ver como ainda conseguem se eleger.
Observar as pessoas que concorrem a posições que, alegadamente, são para representar os interesses da população, me proporcionou muitas reflexões pessoais. Descobri que, como filha da classe trabalhadora e uma mulher da Amazônia, seria impossível não seguir um pensamento político progressista e lutar por estes ideais, e que as tantas atrocidades conservadoras que cresci escutando no meio que a minha educação formal em um colégio particular católico e dito de “elite” me proporcionou eram um atentado à minha própria existência. Percebi que era imperativo ser feminista nas urnas quando decidi votar na Ana Júlia e ajudei a eleger a primeira e única governadora da história do Pará por, acima de qualquer coisa, acreditar que nós mulheres temos não igual, mas maior capacidade do que os homens, afundados no umbigo de seus egocentrismos político-econômico-sociais, de sermos administradoras públicas e legisladoras. Regozijei-me, numa eleição presidencial, em votar em uma amazônida e ambientalista, Marina Silva, no primeiro turno, e em Dilma Rousseff, também compartilhando o lado da história daqueles que elegeram a primeira e única mulher presidenta do Brasil. Sigo apoiando das formas que me são possíveis todas as mulheres que se dispõem a fazer política com pensamento próprio, com trabalhos pautados na melhoria da vida feminina e que promovam a justiça social e a equidade de direitos.
Quando a Dilma foi eleita, eu vivia em São Paulo, onde fazia faculdade, e morava na Alameda Campinas, entre a Alameda Santos e a Avenida Paulista, ou seja, no centro da confusão, onde todo tiro, bomba, pedrada e gritaria aconteciam. Literalmente. Portanto, ver certas figuras, de pertinho, era muito normal. O Levy Fidelix estava sempre parado perto de casa, em frente de um carro com uma maquete do seu indefectível aerotrem. O Eduardo Jorge de vez em quando a contemplar algum músico de rua. A Doutora Havanir, pupila do Enéas (meu nome é Enéas!), passeava pelo bairro com um carro que levava, em cima, o seu busto nos moldes do Canguru da Radiolux (belenenses entenderão) e tocando no último volume um jingle que era uma paródia do tema do Rocky Balboa. Uma vez peguei um santinho das mãos de um Agnaldo Timóteo todo faceiro, descendo a Rua Augusta. Inevitavelmente (ou melhor, obrigatoriamente) eu me interessei pela vida política da cidade e do Estado onde passei a maior parte da minha vida adulta. É impossível negar o amor que tenho por aquela selva de pedras que chamei de lar e é por isso que hoje, em 2024, a um oceano de distância, me sinto tão ultrajada a acompanhar a disputa eleitoral de uma distópica São Paulo.
Olgária Matos, professora titular de Filosofia da USP, explica em entrevista para o jornal da instituição que uma sociedade distópica é caracterizada pela contrariedade aos princípios de convivência e bem-estar compartilhados. Diferentemente da utopia aristotélica, a distopia é marcada pela descrença nas instituições sociais tradicionais, como família, escola e justiça. O Brasil, reflete aspectos dessa distopia, onde imperam medo, desigualdade e desconfiança, e a ausência de educação humanista, centrada na literatura, história e artes, contribui para o agravamento dessas características, afetando diretamente o funcionamento da sociedade. A distopia gera um sentimento generalizado de angústia, onde os avanços científicos e tecnológicos contrastam com a decadência espiritual da sociedade. Essa realidade se traduz em ameaças constantes, fomentando ressentimento e desejo de vingança, especialmente em um mundo fragmentado por questões éticas, religiosas e sexuais. Nessas sociedades, o princípio da realidade enfraquece, e o progresso técnico oculta as perdas espirituais. Governos distópicos tendem a adotar decisões autocráticas e populistas, ignorando as instituições e favorecendo o oportunismo.
Depois das eleições de 2022, com a não-reeleição do ex-presidente, confesso que estive menos atenta aos discursos dos tais “influenciadores” da extrema-direita no Brasil. Apesar de extremamente preocupantes os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, por exemplo, eu, pessoalmente, precisava de umas “férias” dos discursos de ódio propagados pela internet. Sou uma das únicas pessoas que sei que nunca teve covid, porém estar presente virtualmente durante a pandemia foi extremamente adoecedor. Enquanto eu e tanta gente perdia familiares, amigos, pessoas próximas e queridas, um suposto chefe da nação fazia piadinha com o sofrimento de milhões e era replicado por seus seguidores – para citar apenas uma das muitíssimas barbaridades que abalaram a saúde mental das pessoas no Brasil. Por isso, deixei de abrir as manchetes que às vezes salpicavam em minha timeline e vivi, até há um mês, mais ou menos, sem tomar qualquer conhecimento da existência de Pablo Marçal.
Como já disse, particularmente eu me identifico com pensamentos políticos progressistas, mas a questão que envolve este personagem – que não consigo sequer adjetivar como cidadão – passa longe de ser relativa a ideários políticos ou mesmo possíveis posicionamentos partidários, e sim com princípios básicos de civismo e respeito. Respeito é algo que este sujeito, nitidamente, não tem por absolutamente nada nem ninguém. Após tantos comentários, resolvi assistir ao debate promovido pela TV Gazeta com os candidatos à prefeitura de São Paulo e não me é possível descrever o quão absurdada eu fiquei com o comportamento de Marçal, uma bizarrice que compila o pior que pode haver entre discursos de figuras como Trump, Maduro, Le Pen, Kim Jong Un, Putin, Netanyahu, dentre outros, e que, sem nenhum pudor, publicita uma distopia que é considerada palatável por uma relevante parcela da população.
Eu diria que parece uma piada de extremo mau gosto, se não fosse verdadeiramente aterrorizante, o fato de um candidato como ele estar liderando as pesquisas até agora, mesmo que estas apontem empates técnicos entre três pessoas. Como é que a população votante de São Paulo pode levar em conta alguém que, além de sustentar a sua candidatura em frases desconexas e sem sentido, uso desenfreado de termos chulos, fake news, calúnia e difamação aos seus opositores, tem como propostas projetos sem viabilidade técnica alguma, como a criação de um cinturão de teleféricos e a construção do prédio mais alto do mundo – sobre o qual ele sequer esclarece a finalidade?
A implementação de teleféricos interligando bairros periféricos como Brasilândia, na zona noroeste, Vila União, na zona leste, e Capão Redondo, na zona sul, são questionados por especialistas como Lúcio Gomes, professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que em entrevista à UOL disse considerar o projeto um “factoide” e argumenta que a demanda de transporte nesses trajetos exige soluções de maior capacidade, como o metrô. “Os bondinhos dos teleféricos são pequenos e há um grande intervalo entre um e outro. É uma proposta completamente sem fundamento”. Ele também observa que São Paulo não possui o relevo característico de cidades como La Paz, na Bolívia, ou Medellín, na Colômbia, onde os teleféricos foram implementados com sucesso para conectar áreas montanhosas e bairros mais isolados.
Além dos projetos inviáveis com o claro objetivo de mascarar a ausência de propostas reais, o comportamento de Marçal é completamente inaceitável, não só para um representante político como para qualquer pessoa que viva em sociedade. Assisti atônita a ele, usando um boné que parecia aludir a algum vilão tosco de filme adolescente da sessão da tarde que pratica bullying com os colegas da escola, a se comportar como um pré-adolescente da 5ª série que tenta enfurecer o coleguinha fazendo gestos e caretas. Sim, gestos e caretas, sem nem citar os xingamentos diretos aos outros candidatos, aos quais chamava de “Bananinha”, “ChaTabata”, “Comedor de Açúcar”, entre outros ultrajes. Datena, jornalista com quase 50 anos de experiência, ficou completamente desestabilizado diante de atitude tão desrespeitosa e deixou o seu púlpito em direção a Marçal. A mediadora Denise Campos de Toledo tremia visivelmente, e por muitas vezes sequer conseguia acertar as palavras diante de um cenário tão grotesco. Várias vezes o “coach” afirmou que o debate não era para discutir propostas e sim para ver quem aguentava a “porrada”.
São Paulo é uma megalópole de mais de onze milhões de habitantes, que agrega uma região metropolitana de vinte e um milhões de residentes – que é mais do que o dobro da população de Portugal, por exemplo. É impossível negar a grande influência que a cidade mais populosa da América exerce em todo o país, incluindo o Pará, no continente e no mundo. Outro dia li numa rede social do jornalista Leandro Demori que não devemos replicar os discursos absurdos e antidemocráticos desses tipos de atores do cenário político, mesmo em tom de crítica ou de galhofa, porque assim aumentamos suas visibilidades, amplificando seu alcance, porém precisamos promover o diálogo crítico e falar sobre o quanto estas falas e comportamentos são, mais do que ultrajantes, extremamente perigosos para a existência de uma sociedade democrática e de direitos. Em 2010, como que num gracejo, São Paulo elegeu o Tiririca como o deputado federal mais votado do país. Catorze anos depois, o risco de eleger uma criatura sem piada alguma, condenado a quatro anos e cinco meses por furto qualificado e investigado pela polícia federal por crimes de falsidade ideológica eleitoral, apropriação indébita eleitoral e lavagem de dinheiro durante as eleições de 2022, é triste e dá muito, muito medo.
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