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Tive de esperar alguns dias para digerir e conseguir escrever sobre os 24 segundos que entalaram a mim e milhões de pessoas com uma indignação inenarrável diante de tanto absurdo, de uma desumanidade revoltante: foi com uma votação relâmpago que o requerimento de urgência do Projeto de Lei 1904/2024, que equipara abortos feitos após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples (com pena de reclusão de 6 a 20 anos, inclusive em casos de estupro) foi aprovado pela Câmara dos Deputados do Brasil, o que retira a necessidade de a matéria passar por comissões temáticas e concede prioridade para sua votação ir a plenário. A legislação brasileira autoriza o aborto em casos de estupro, fetos anencéfalos e risco à vida da gestante e as principais vítimas da aprovação desta lei hedionda seriam justamente meninas violentadas, crianças e adolescentes, que nem sabem identificar o que é uma gravidez.

Enquanto o presidente francês Emmanuel Macron, observando o crescimento da extrema-direita, conseguiu um marco histórico, em março de 2024, ao tornar a França o primeiro país onde o aborto é um direito constitucional das mulheres, no Brasil um grupo de políticos está determinado a extirpar um direito que pode ser definido, no mínimo, como humanitário básico, já garantido por lei, a uma mulher estuprada, só para manipular a opinião pública de um considerável nicho da sociedade com pensamentos extremistas contra o presidente Lula, que tem o poder de veto – apesar de o Congresso ter também poder de derrubar este veto. Ou seja, mais uma vez os corpos femininos são apenas um instrumento de manobra política para ganhar poder, assim como pensamentos religiosos, que em hipótese nenhuma deveriam ter algum peso dentro da legislação de um Estado laico como o Brasil.

No primeiro registro literário que se tem da invasão do Brasil pelos colonizadores portugueses, Pero Vaz de Caminha deixa bem claro ao rei Manuel I que acredita que o caminho mais fácil de dominação dos autóctones seria através da religião. A Igreja Católica teve um amplo papel na colonização do Brasil desde a organização social e cultural até a exploração econômica e terri         torial. Os missionários estabeleceram missões e aldeamentos onde os nativos eram forçadamente catequizados, batizados e ensinados na fé católica; foram responsáveis pelas primeiras escolas de educação religiosa e secular, nas quais indígenas eram ensinados a abandonar as práticas tradicionais e induzidos a adotar a cultura europeia; ocupavam cargos de conselheiros das autoridades coloniais, influenciando decisões políticas e administrativas, especialmente nas áreas consideradas como “moralidade pública”, que incluíam as leis matrimoniais. A Igreja teve grande poder no controle social e impôs as normas e valores cristãos, regulando os comportamentos moral, social e familiar. Além disso, institucionalmente a Igreja legitimou (e se beneficiou com) a escravidão africana. Estabelecido pela Carta Régia de 1810, o catolicismo era a religião oficial do Estado.

No entanto, com a Proclamação da República, em 1889, e a a primeira Constituição republicana em 1891, o Brasil tornou-se um Estado laico. O artigo 72, parágrafo 3º declarou que “todos os cidadãos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para isso e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum” e que “nenhum culto ou Igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados”. Influenciado pelo Positivismo, que acreditava na ciência e no progresso como bases para a organização social e política, o movimento republicano brasileiro defendia a separação entre Igreja e Estado. A laicidade do Estado foi mantida e reforçada nas Constituições de 1934, de 1946, de 1967 e na atual, de 1988, que diz, em seu artigo 19: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II – recusar fé aos documentos públicos; III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”.

“Religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo.” O célebre trecho de Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, publicada em 1844 por Karl Marx e Friedrich Engels, reflete sobre a “fuga” – assim como o uso de uma droga opioide – que a religião oferece a uma sociedade desigual ao desviar a atenção das pessoas dos motivos reais de sua opressão e sofrimento, contribuindo para mantê-las em estado de passividade e desestimulando as lutas por mudanças concretas em suas condições de vida ao prometer uma recompensa após a morte. Sobre este pretexto da “salvação da alma” num plano espiritual, pessoas são impulsionadas não só a adotarem regras impostas por suas religiões, mas a agirem como régua moral da sociedade em questões que cabem serem promulgadas pela legislação que é laica, que constitucionalmente não pode ser determinada por nenhum tipo de pensamento religioso. Com a ocupação de uma grande quantidade de cargos legislativos no Brasil por representantes de igrejas evangélicas, o cenário virou um círculo vicioso onde pastores induzem os fiéis a pensamentos e comportamentos extremistas e os fiéis são manipulados a manterem seus líderes religiosos em posições de poder político com a promessa de que eles irão impor à sociedade em geral as opiniões e valores defendidos por seu grupo. E aí o lema “Deus, pátria e família”, usado por Hitler, Mussolini, Salazar, Bolsonaro e tantos outros tiranos, entra em jogo para validar muita atrocidade.

Em 2020 uma tragédia tomou conta dos noticiários brasileiros: uma menina de então dez anos, que era abusada sexualmente em casa, em São Matheus, interior do Estado do Espírito Santo, pelo tio, durante quatro anos, foi vítima de uma perseguição extremista, fomentada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, Damares Alves, que tentou de formas atrozes impedir que a criança realizasse seu direito constitucional ao aborto. Quando foi levada pela família para um hospital na capital Vitória, com mais de vinte e duas semanas de gestação, a instituição recusou a fazer o procedimento, já autorizado pela Justiça. Damares, segundo reportagem investigativa da Folha de São Paulo, enviou assessores e políticos aliados para evitarem o encerramento da gestação, chegando a tentar manipular o Conselho Tutelar da cidade e a prefeitura com promessas de melhorias nos atendimentos em troca do impedimento do aborto. O plano era transferir a menina para um hospital em Jacareí, São Paulo, que tem interferência da pentecostal Igreja Quadrangular, na qual a ex-ministra atuou como pastora antes da carreira política. Após o fracasso das tentativas, o nome completo da criança e o hospital onde o aborto seria realizado foi vazado para uma ativista de extrema direita que convocou uma verdadeira caça às bruxas, endossada por uma horda de seguidores. A menina precisou entrar escondida, no porta-malas de um carro, no hospital no Recife, no Estado de Pernambuco, onde finalmente conseguiu ter seu direito cumprido, porém precisou aderir ao Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência (Provita) e mudar de identidade e endereço para ter a oportunidade de viver sem a perseguição de fanáticos religiosos.

No Brasil só existem três locais que realizam abortos legais após vinte e duas semanas de gestação em vítimas de estupro: um em Uberlândia, em Minas Gerais, um em Salvador, na Bahia, e outro no Recife, em Pernambuco. Ou seja, uma mulher ou menina estuprada na Amazônia precisaria percorrer cerca de três mil quilômetros para receber o atendimento legal. Em entrevista para a BBC Brasil, a obstetra Helena Paro, que trabalha em um desses hospitais, declarou, sobre o PL, que “esse limite de vinte e duas semanas é um passo para se proibir totalmente o aborto. Porque a narrativa que se tenta colocar é a de que um feto tem direitos, sendo que o ponto de corte, de onde uma pessoa começa ter direitos legalmente, é o nascimento. Por essa lógica, se o feto tem direito, o embrião terá direitos, a célula fecundada vai ter direitos. É esse o movimento que estão tentando fazer”. A médica relata que a dificuldade em acessar legalmente o aborto é um dos principais fatores da interrupção da gravidez depois das vinte e duas semanas. Muitos profissionais de saúde dão orientações erradas por falta de conhecimento legal ou mesmo se recusam a fornecer informações quando as sabem e os próprios hospitais colocam obstáculos nos processos. No Brasil, hoje, não há necessidade legal de boletim de ocorrência ou alvará judicial e sim de uma avaliação multidisciplinar de ginecologia, psicologia e serviço social e a assinatura de um termo de consentimento pela vítima para a aprovação do aborto. Quando ela tem entre dezesseis e dezoito anos, seus representantes legais devem assinar conjuntamente. Quando são menores de dezesseis, apenas os representantes assinam.

Em Imperial Leather, Anne McClintock fala sobre o “paradoxo da família” ao analisar a narrativa da “Família do Homem”, que unificou as distinções de raça, classe e gênero após 1859 e o advento do darwinismo social. A família como metáfora ofereceu uma narrativa única para a história global, enquanto a família como instituição foi esvaziada de história e representada como existindo além do mercado, da política e da própria história. A imagem da família natural e patriarcal, aliada ao darwinismo social, tornou-se o tropo organizador para unificar culturas diversas em uma narrativa global ordenada e gerida pelos europeus. Nesse processo, a ideia de natureza divina foi substituída pela ideia de natureza imperial, garantindo que a essência “universal” do individualismo iluminista pertencesse apenas aos homens proprietários de ascendência europeia. A subordinação de mulheres e crianças, considerada “natural”, permitia retratar outras formas de hierarquia também como naturais. A imagem da família, portanto, ofereceu um tropo inestimável para a representação da mudança histórica como algo, além de natural, “inevitável”. Assim, o colonialismo foi legitimado como uma progressão linear e não revolucionária, onde pais (colonizadores) governavam “benignamente” sobre crianças imaturas (colonizados). McClintock também destaca que a análise de Edward Said sobre o fracasso em produzir filhos, que foi visto como uma aflição cultural e levou a um deslocamento de autoridade das grandes famílias para a burocracia. A imagem anacrônica da família foi então projetada nas novas ordens burocráticas, nacionalistas e coloniais, o que reforçou ainda mais a subordinação de mulheres e crianças.

                  E é exatamente sobre o que se trata este projeto de lei – já alcunhado de PL do estupro – que prevê uma pena maior a uma mulher que aborta do que ao seu estuprador: subordinar mulheres e crianças ao poder colonial, que atualmente pode não ser mais traduzido na figura de um português, porém certamente continua sendo na de um homem. Como também observou McClintock em Imperial Leather, há uma razão de Cristóvão Colombo e tantos outros “exploradores” compararem os mapas cartográficos ao corpo de uma mulher: a terra, como ser feminino, está legitimamente sujeita à dominação masculina. O homem, até hoje, acha que pode legislar sobre uma mulher ao seu bel prazer. Até hoje há mulheres que, além de aparentemente não terem percebido a violência multidisciplinar que fomos e somos submetidas, ainda unem suas forças para perpetuá-la, na clássica alegoria da formiga que, com raiva da cigarra, votou no inseticida. Dos trinta e três parlamentares favoráveis ao PL do estupro, doze são mulheres. Uma delas é do meu Estado, do Pará, vítima de violência política de gênero por parte de um ex-deputado federal – que está preso pela prática reiterada de violência contra ela nas redes sociais –, evangélica e que, depois de ver as repercussões negativas na internet, retirou seu apoio.

Em vez de discutir uma agenda de direitos, o poder legislativo adotou uma “pauta de costumes”, termo completamente equivocado que tem como objetivo manipular uma massa de manobra que caiu no discurso extremista e conservador. Não é cabível querer determinar sobre o corpo de outrem. Estamos em 2024 e já estamos muito atrasados, juridicamente falando, no Brasil, ao não garantir que o aborto seja um direito constitucional a toda e a qualquer mulher, vítima de estupro ou não. Ninguém aborta por prazer, eu desafio alguém a encontrar uma única história sobre aborto que não envolva tristeza e dor. E a grande verdade é que, quem quer e quem precisa, aborta. A diferença é uma situação econômica que garante acesso a clínicas de atuação clandestina, porém bem equipadas, ou a uma viagem até a Europa para passar pelo processo de forma legal, ou então a falta de recursos financeiros e o desespero que levam mulheres até verdadeiros açougues onde colocam suas vidas em risco – quando não a perdem. Lélia Gonzales, em Por Um Feminismo Afro-Latino-Americano, defende a importância de entendermos a dinâmica do colonialismo, do racismo e do patriarcado na análise das opressões enfrentadas por mulheres não-brancas (adotando aqui o conceito de branquitude como uma construção social e cultural que atribui uma posição de privilégio na sociedade), uma vez que este legado interseccional continua a moldar as estruturas sociais e econômicas do Brasil, perpetuando desigualdades baseadas em raça e gênero. Segundo uma pesquisa de 2023 do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, há mais de onze milhões de mães que criam seus filhos sem a participação do pai, o que corresponde a 15% dos lares do país. A quantidade de mães que criam sozinhas seus filhos, no Brasil, é maior do que a população de Portugal. E 90% das mulheres que se tornaram mães solo entre 2012 e 2022 são negras. Para o homem é muito fácil abortar. É só sumir no mundo e tchau.

Estamos ainda longe do estágio desejável de termos total autonomia sobre nossos corpos e numa posição esdrúxula de nos vermos no dever de nos posicionarmos e lutarmos para não sermos obrigadas a parir o fruto de um estupro. Não sei nem como começar a argumentar que não cabe ao Estado julgar moralmente nossas escolhas por tão óbvio que isto é. Não é porque eu, graduada, pós-graduada, doutoranda, em um relacionamento estável, que mesmo com instinto maternal nulo não vislumbro a possibilidade de interromper uma gestação que pudesse vir a acontecer por um lapso contraceptivo, que me acharia no direito de opinar sobre as decisões de outras mulheres, principalmente tratando-se meninas, vulneráveis. Um homem deveria ter, no mínimo, o bom senso de saber que esta é uma questão sobre a qual ele não tem direito de decidir. Minha mãe conseguiu me proteger me criando num país onde a cada oito minutos uma mulher é estuprada. Infelizmente muitas mães não conseguem. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública registrou, em 2022, a maior quantidade de estupros da história: das 74.930 vítimas, 56.820 eram crianças menores de catorze anos, ou seja, vulneráveis. Em 86% destes casos, a vítima conhecia seu estuprador, e em mais de 68% das vezes o crime aconteceu dentro da casa da vítima.

Um dos dias mais tristes da minha vida, que me senti com o coração completamente dilacerado, foi o dia em que entrevistei a mãe de uma menina portadora de necessidades especiais, com deficiência intelectual, que foi estuprada por um vizinho quando era pré-adolescente e só descobriu a gravidez nas vésperas do parto. A menina teve outra menina, a quem ameaçou matar durante muitos anos. A avó virou mãe da neta, que virou irmã da mãe e, mesmo ainda uma criança, já tinha um sentimento de proteção sobre ela, relevando as ameaças e compreendendo toda aquela violência sem ainda compreender. Eu tenho enorme esperança de que a criança vai ter um futuro melhor do que suas ascendentes. Eu sei que a mãe-avó criou aquele tipo de força que só uma mulher consegue do nada criar, personificando “Maria, Maria” que “não vive, apenas aguenta”. Mas a vítima do estupro… Quando tomei conhecimento do PL não pude deixar de pensar nela e na frase que ela mais repetia, ao saber que estava grávida: “minha vida acabou”. Não tenho nem como argumentar ao contrário.

Não consigo compreender como um ser humano não seja capaz de vislumbrar a perversidade de obrigar uma criança a prosseguir com uma gestação. Assim como o caso que relatei, a maioria das vítimas vulneráveis de estupro não têm condições de identificar uma gestação no próprio corpo. Como uma menina ou uma mulher pode ser considerada homicida, com uma punição maior do que a do seu violador? É inadmissível. Uma das frases mais usadas nas manifestações que estão acontecendo pelas ruas do país é “criança não é mãe, estuprador não é pai”. Em vez de gastarmos tanto tempo, energia e dinheiro com este tipo de discussão sem cabimento e que claramente é só uma forma de manobra política, deveríamos estar exigindo que políticas públicas sérias fossem implementadas para evitarmos ao máximo chegar no estágio final da violência contra a mulher, que é o aborto. Precisamos parar de eleger este tipo de gente que usa a religião como ópio. Aliás, por causa das inúmeras manifestações públicas contra o PL, o presidente da Câmara dos Deputados adiou a votação para o segundo semestre. Vai ser um prato cheio para tumultuar as eleições municipais do Brasil. O aborto é uma questão de saúde pública, ponto. Líderes religiosos podem dar suas opiniões dentro de seus templos, mas jamais causar qualquer tipo de intervenção na legislação. O Estado é laico, e se as igrejas quiserem ajudar na garantia dos direitos humanos, que comecem assegurando que pastores e sacerdotes que cometem crimes sexuais sejam julgados e punidos pela justiça – quem quiser saber mais sobre os casos revoltantes que acontecem no Brasil, uma rápida pesquisa no Google é capaz de mostrar. Precisamos garantir que nossas meninas cresçam com a consciência de que não podem mais se deixar silenciar, que tenham condições de exigir que todos os seus direitos sejam promulgados e respeitados. Precisamos nos proteger para que finalmente chegue um dia em que não tenhamos medo de viver.

* Ilustração: Marcela Sheid

** Artigo publicado originalmente em Buala.org

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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