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Nesta semana, daremos uma pausa nos textos sobre a historiografia da Literatura produzida na Amazônia para falar de um fato que rompe os contratos e os sistema canônicos literários sobre autores do Norte do País. Para quem labuta com a Literatura produzida na Amazônia, entende os processos de invisibilidades a que estamos inseridos e o preconceito que incide sobre ela. Bem, vamos ao fato.

Assistimos pelas redes sociais um trailer da nova Série da Netflix prevista para estrear no dia 20 de agosto, e com um diferencial. A trama dirigida por Fernando Meirelles e Quico Meirelles, interpretada pelo olhar do cinema, coloca em circuito a obra “Pssica” de Edyr Augusto Proença, publicada pela editora Boitempo. Posso dizer da minha admiração por sua grandeza na arte literária e pela simplicidade e disponibilidade com que trata seus amigos e leitores. Inúmeras vezes, Edyr atendeu aos meus convites para falar de sua obra e sobre a produção literária amazônica em sala de aula para estudantes do curso de Letras.

Neste texto, busco expor minha análise crítica, não da série da Netflix, porém da obra literária, destacando sua intensa contribuição para a literatura brasileira contemporânea. Trago a lume, a arte da escrita de Proença com toda a sua potência. É claro que esta análise está eivada e movida pela grande afeição que tenho pelo autor e por sua obra.

Edyr Augusto Proença, cronista do submundo amazônico e arquiteto de uma estética marginal, no sentido de está a margem, nos presenteia em “Pssica” com uma narrativa de impacto visceral.

O romance, publicado em 2015, reafirma a potência de sua literatura comprometida com a visibilidade de uma Amazônia urbana, violenta e esquecida. Com uma linguagem cortante e uma cadência vertiginosa, Edyr constrói um universo onde os limites entre civilização e barbárie colapsam.

Pssica é m retrato estilhaçado da Amazônia urbana, Edyr Augusto desmonta o mito da Amazônia paradisíaca, exaltada por narrativas do imaginário Edênico e romântico ou florístico, como dizia o escritor Abguar Bastos (1902 – 1995)

A cidade de Belém é apresentada como um organismo vivo, como na obra o cortiço de Aluísio Azevedo, vibrante, corrupto e pulsante. A paisagem urbana descrita em Pssica é um território, não o espaço físico e geográfico, mas as relações, hábitos, costumes e vivências, desequilíbrios e harmonias, aonde estão em disputa, forças ilegais, como o tráfico, a prostituição, que moldam a vida cotidiana. O autor captura a degradação do espaço amazônico, não como exceção, mas como sistema. A selva, nesse caso, é feita de cimento, cabos elétricos, sangue e gritos abafados.

O enredo acompanha o sequestro e o tráfico humano de  uma jovem, arrastada das margens do rio para o núcleo duro do comércio sexual. A trajetória da personagem é também a narrativa da objetificação do corpo amazônico, que se torna produto e mercadoria em escala global. A denúncia aqui é clara: a Amazônia é explorada não apenas em sua fauna e flora, e principalmente em sua gente, seus corpos vulneráveis, seus territórios abandonados, sua juventude condenada.

A linguagem um espetáculo à parte. Seu estilo é inconfundível: frases curtas, quase telegráficas, quase sempre sem vírgulas, como se a narrativa fosse escrita com a urgência de quem testemunha uma cena de violência e a tenta relatar antes que desapareça. Esse ritmo frenético, quase cinematográfico, coloca o leitor na posição de cúmplice e refém: não há tempo para respirar, para refletir, para sair da cena. As tramas e os núcleos de ações nos envolvem a ponto de não interromper a leitura e cada parágrafo é um clímax tenso e intenso, esse recorte estilístico não é mero recurso técnico, mas uma tomada de posição. A opção por uma sintaxe direta, seca e fragmentada corresponde à própria experiência da marginalidade que o texto encena. O caos, o medo, a desintegração social não comportam períodos longos nem descrições poéticas. A escrita de Edyr é uma forma de resistência estética que mimetiza a selvageria do real, provocando o efeito catártico ao leitor.  Trata-se de uma linguagem-escombro: tudo é ruína, e é dessa ruína que o autor extrai sua potência.

Proença não estetiza a violência: ele a evidencia. Seus personagens são moldados por contextos de extrema precariedade, e suas ações, embora chocantes, emergem como respostas desesperadas à ausência de alternativas. A polícia, o Estado, a Justiça são forças ausentes ou cúmplices. O mundo de Pssica é governado por códigos subterrâneos, do submundo, das ocultações. A violência é também estrutural: não há figura heroica, não há redenção possível. Mesmo quando a personagem central tenta resistir ou escapar, é engolida por uma cadeia de exploração que ultrapassa fronteiras. A narrativa, assim, se insere numa crítica aguda ao tráfico internacional de pessoas, ao turismo sexual e à destruição sistemática das populações tradicionais amazônicas, tudo isso articulado por um capitalismo que se alimenta da desigualdade e da invisibilidade.

Outro traço forte na composição do texto literário de Edyr é a incorporação da oralidade popular amazônica à tessitura narrativa. Há um léxico regional que emerge com força e naturalidade, sem notas de rodapé nem concessões ao leitor alheio ao contexto. Esse gesto é político e estético: trata-se de legitimar uma forma de expressão muitas vezes marginalizada pelo cânone literário nacional, o escritor e professor, João de Jesus Paes Loureiro em seu livro, Cultura Amazônica uma poética de Imaginário retrata magnificamente essa composição. Mais do que representar a fala das ruas, dos becos e das feiras, Edyr faz da oralidade o próprio motor da narrativa. Sua escrita tem ritmo, gírias, cortes abruptos, como se o texto fosse dito em voz alta, num barulho de fundo onde vozes se sobrepõem. É uma literatura que pulsa, que sangra, que fala com sotaque.

Pssica está para além de uma obra de ficção: é um grito. Um grito contra a exploração, o apagamento e a indiferença. Pssica é uma obra inquietante. Sua literatura é uma denúncia, uma tomada de posição estética e ética diante das injustiças sociais, políticas e econômicas que assolam a Amazônia.

Com seu estilo fragmentado, seco e pulsante, ele dá lugar aos que normalmente estão invisíveis: prostitutas, traficados, delinquentes, migrantes, ribeirinhos. Por meio de sua escrita, essas vidas ganham presença, mesmo que trágica. Sua estética é radical porque se recusa a romantizar ou aliviar o horror. Ao contrário: mergulha nele, expondo suas vísceras, sua lógica perversa, sua banalização.

   Pssica é, portanto, uma obra indispensável para quem deseja compreender as múltiplas camadas da Amazônia contemporânea que pulsa nos subterrâneos da modernidade. Edyr Augusto Proença, indubitavelmente, é um dos autores mais contundentes e necessários para a literatura brasileira e universal atual.

Marcos Valério Reis
Marcos Valerio Reis, jornalista, mestre em Comunicação, Doutor em Comunicação, Linguagens e Cultura, pós-doutor em Comunicação. Membro do Grupo de pesquisa Academia do Peixe Frito, pesquisador da arte literária na Amazônia e membro da Academia Paraense de Jornalismo.

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