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Desde a madrugada do último dia 25 de março, o povo indígena Munduruku mantém um bloqueio em um trecho de sobreposição da BR-163 com a BR-230, próximo ao município de Itaituba (PA), como forma de protesto contra a Lei 14.701/2023, que oficializa a tese do Marco Temporal — mecanismo jurídico que restringe a demarcação de terras indígenas àquelas que estivessem ocupadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. A mobilização, que já dura seis dias, é constituída por manifestações pacíficas, rezas, cantos e presença de mulheres, crianças, idosos e guerreiros indígenas, mas também por episódios graves de violência e ameaças contra os manifestantes.

A liderança indígena Alessandra Korap Munduruku, reconhecida internacionalmente por sua luta em defesa dos territórios indígenas e contra o garimpo ilegal, uma das principais vozes da resistência amazônica, que, em 2023, recebeu o Prêmio Goldman, considerado o “Nobel do Meio Ambiente”, divulgou em suas redes sociais um video que explica a luta contra o Marco Temporal, o caráter pacífico do bloqueio e que o mesmo só funciona para ônibus e caminhões: veículos particulares, de pequeno porte, estão passando normalmente pela estrada.

O bloqueio é um ato de resistência coletiva, que denuncia as ameaças representadas pelo Marco Temporal à existência, cultura e direitos territoriais dos povos originários. “Não negociamos nossos direitos. Nosso marco é ancestral. Nossa história não começa em 1988”, afirmam os Munduruku em seus comunicados. Margareth Maytapu, líderança do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA), também pediu apoio à população.

Apesar do caráter pacífico da mobilização, os indígenas relatam inúmeros episódios de violência e hostilidade por parte de motoristas que transitam pela rodovia. Na noite do dia 28, por volta das 20h, um caminhoneiro efetuou três disparos de arma de fogo contra os manifestantes. Cerca de uma hora depois, mais um tiro foi disparado em direção à barreira, aumentando ainda mais a tensão no local.

No dia 29, um caminhão avançou contra a barreira com crianças, mulheres e idosos, sob a justificativa de que havia “perdido o freio”. O impacto poderia ter causado uma tragédia. Mais cedo, outros motoristas atropelaram barricadas e destruíram equipamentos de alimentação e abrigo dos indígenas. No mesmo dia, pedras foram arremessadas contra os manifestantes, ferindo uma cacica e outros parentes.

Os indígenas denunciam ainda a omissão das autoridades. Segundo nota divulgada pelo CITA nas redes sociais, até o dia 30 de março, nenhuma visita ou contato direto foi feito pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) nem pelo Ministério dos Povos Indígenas. “Estamos esperando pelo menos uma ligação, já que não podem vir até aqui”, publicaram os organizadores da ocupação.

O Ministério Público Federal (MPF) informou estar acompanhando o caso e cobrando presença constante da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para garantir a segurança dos indígenas e evitar novos episódios de violência. Até o momento, porém, a resposta estatal tem sido considerada insuficiente pelos manifestantes.

No dia 27 de março, parentes indígenas do Baixo Tapajós chegaram ao acampamento para reforçar a ocupação, um gesto de solidariedade e reafirmação da luta conjunta dos povos originários pela vida, pela floresta e pela dignidade.

Além da restrição de direitos territoriais, os indígenas alertam para os efeitos da lei que facilita a exploração econômica das terras indígenas, permitindo atividades como mineração e agropecuária sem consulta prévia às comunidades — uma violação direta da Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

Os Munduruku vivem há anos sob forte pressão em seus territórios. A região é impactada pela presença de garimpos ilegais, pelos efeitos do agronegócio — como o escoamento de grãos, especialmente soja, que afeta a qualidade dos rios — e por projetos de infraestrutura que desconsideram os modos de vida indígenas.

Entre 2024 e 2025, o governo federal realizou operações de retirada de garimpeiros invasores na terra indígena Munduruku, mas a presença de interesses econômicos e a lentidão nas demarcações continuam ameaçando o território.

Para o povo Munduruku, derrubar o Marco Temporal é questão de sobrevivência. “Estamos aqui porque nossas terras seguem ameaçadas. O Marco Temporal é um ataque direto contra os povos indígenas, uma tentativa de apagar nossa existência e abrir caminho para mais destruição. Mas resistimos há séculos e não será agora que vamos recuar!”, afirmam.

A mobilização acontece no momento em que a Câmara de Conciliação do Supremo Tribunal Federal (STF) retoma as discussões sobre a tese do Marco Temporal. Enquanto isso, os indígenas seguem ocupando a rodovia com coragem, organização e espiritualidade, mesmo sob riscos constantes.

Fotos e videos: Olhar Nativo da Amazonia / Coletivo Indigena Kirimbawaita / Coletivo Dauk / Coletivo Audiovisual Wakoborun@coletivo Audiovisual Daje Kapap Eypi / Associação Pariri / Conselho Indígena Tapajós e Arapinus 

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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