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Sábado, 15 de novembro de 2025. Em jogo válido pela 37ª Rodada do Campeonato Brasileiro da Série B, o Clube do Remo enfrentava o Avaí no Estádio da Ressacada, em Florianópolis. Ante a perspectiva de acesso à Série A, muitos torcedores paraenses estavam presentes à partida cujo resultado só importa, no contexto desta crônica, na exata medida em que insuflou ânimos e perverteu o regozijo da vitória num deleite sádico e revelador, demonstração torpe de racismo, preconceito e xenofobia.

Imaginando-se encoberta e protegida pelo manto do anonimato, como costuma ocorrer com os covardes, uma torcedora catarinense, dona de um desses sobrenomes impronunciáveis em que abundam consoantes e faltam vogais, ocupou-se em demonstrar que, no seu caso particular, sobram-lhe também arrogâncias e prepotências mas carecem-lhe virtudes e percepções mais instruídas da realidade.

Absorta em sua bolha fictícia de eugenia e prosperidade, a pretensa ariana assacou ofensas e impropérios contra a torcida adversária, uma gente que ela considera inferior, degenerada pela mestiçagem amazônida, indigna de estar ali a incomodá-la – “O que é que tem no Pará, seu feio? Gastou o salário pra vir, agora vai embora a pé! Olha a tua cor! Olha a tua cor! Pobre aqui não fica! Quer comer? Tá com fome? Ali tem comidinha de graça!”

Todavia, por um inexplicável acaso, daqueles que marcam para sempre a vida de quem os enfrenta, o manto do anonimato era tão irreal quanto a beleza daquela que chamava seus interlocutores de feios, tão fugaz quanto a superioridade que a supremacista (praticamente uma skinhead) se atribuía. As tais ofensas e impropérios foram filmados, lançados no universo paralelo das redes sociais e ganharam o mundo, tornando repentinamente famosa a até então desconhecida torcedora do Avaí.

Para piorar bastante o seu final de semana (e os dias difíceis que virão pela frente), a conduta publicizada enquadra-se nos tipos penais dos crimes de injúria racial (equiparado ao racismo) e xenofobia, com penas que variam entre dois e cinco anos de reclusão e multa. Em outros termos, aquela aborrecida florianopolitana foi apanhada em flagrante delito, e poderia ter recebido ali mesmo voz de prisão.

Posso imaginar seu desconforto ao chegar em casa e acessar as redes sociais, seu susto ao receber mensagens de alerta, seu pavor ao ler os comentários amistosos que lhe foram dirigidos, seu colapso mental quando se viu como ré no impiedoso tribunal da internet, corte suprema que faz a inquisição parecer brincadeira de criança. Nada disso me apraz, embora seja paraense, amazônida de berço e não exatamente bonito, atributos que me permitem supor que não seria benvindo na Floripa dos sonhos da Sra. Ana Costa Milena Schwtzer (é esse o nome da fera).

Na verdade, em episódios assim não há nada de aprazível. Só há tristeza, vergonha e lamento, constatação dolorida de que não demos certo enquanto nação, não nos livramos da mentalidade colonialista que há 500 anos distorce a razão de alguns sulistas e sudestinos refratários ao restante do Brasil, desconhecedores da relação de interdependência regional que caracteriza o país, opositores ardilosos do progresso do norte, nordeste e centro-oeste brasileiros.

Tive vontade de falar com a tal cidadã; pensei em oferecer-lhe pro bono meus préstimos como advogado – eu a representaria com dedicação, fiel ao sacramento constitucional segundo o qual todos têm direito à defesa, mesmo os mais pestilentos criminosos. Estrategicamente poderia ser interessante que seu patrono fosse justamente um paraense, nortista desprovido de beleza, batizado com um sobrenome comum que não denota ascendência escandinava, germânica ou anglo-saxônica.

Não obstante, refleti mais a fundo e declinei do nobre propósito, preferindo manter-me silente, recolhido à inevitável melancolia, até porque a acusada certamente desaprovaria minha linha de atuação, toda ela baseada na imediata confissão, no reconhecimento público da conduta praticada, na admissão irrestrita da prática dos ilícitos penais já referidos.

Seria mais digno do que pedir desculpas através das redes sociais, em cartinhas ridículas e despudoradas cheias de argumentos vazios: “eu não sou assim, foi um caso isolado, estou arrependida, eu até tenho amigos paraenses, alguns bastante feiosos, pardos, pretos e de baixa renda, mesmo os esfomeados e fedorentos, com pitiú de suor e peixe, podem todos vir à Santa Catarina, sem problema algum, prometo recebê-los em casa, com acepipes fartos e gratuitos”. Seria mais corajoso do que alegar problemas emocionais, uso excessivo de álcool e outras escusas do gênero.

Se da confissão adviesse a condenação, eu sugeriria que ela cumprisse a pena com altivez, buscando pagar sua dívida com a sociedade, como se costuma dizer no meio jurídico. Assim, ao final da penitência, poderia nos encarar a todos de cabeça erguida, quem sabe até vir a Belém passar o Círio de Nazaré para pedir perdão por tanta estultice. No meio tempo, atento às resoluções do Conselho Nacional de Justiça e sabedor de que a literatura salva e redime, eu recomendaria que lesse bastante, que buscasse nos livros a compreensão que lhe falta, a luz que a livraria da escuridão. A cada livro lido, quatro dias a menos de privação de liberdade, ou, não sendo esta a pena aplicada, um pouco mais de conteúdo, instrução e cultura.

De início, objetivando introduzir temas correlatos à sua conduta, eu apontaria obras de Jorge Amado, ardoroso defensor da negritude, da tolerância religiosa e dos valores regionais que tecem, ponto a ponto, a renda vistosa e radiante da melhor brasilidade. Tenda dos Milagres seria uma boa opção, apta a ensinar-lhe os valores e crenças de Pedro Archanjo, mártir da mestiçagem, crítico do cientificismo racista e das frágeis teorias eugenistas, experiente nas misturas que formam a identidade nacional, apreciador do sincretismo filosófico enquanto síntese equilibrada e produtiva de diferentes visões de mundo.

O único risco a considerar seria a possibilidade da novel leitora afeiçoar-se pelo Professor Nilo Argolo, antagonista raivoso de Pedro Archanjo, para quem a salvação da Bahia passava pelo seu “embranquecimento”.

Não quero crer. Preciso manter minha fé na humanidade… e em Jorge Amado!  

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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