Publicado em: 19 de outubro de 2025
A língua é, antes de tudo, um instrumento de poder. Ela comunica e organiza o mundo simbólico, definindo quem pode falar, o que pode ser dito e de que forma algo é reconhecido como legítimo. Nas relações sociais, o domínio da norma-padrão, por exemplo, torna-se uma forma de capital simbólico, conforme analisa Pierre Bourdieu, conferindo prestígio e autoridade àqueles que a dominam, enquanto marginaliza os falantes de variedades populares ou regionais. Assim, a língua funciona como um mecanismo de controle e exclusão, reforçando hierarquias de classe, raça e gênero. O poder linguístico está nas palavras,e, nas condições de produção e de escuta: quem é ouvido e valorizado linguísticamente tem mais poder social. É preciso compreender as estruturas de poder que sustentam as desigualdades em nossa sociedade e que se intensificam por meio da língua.
Historicamente, o português herdou de suas raízes latinas a tendência de empregar sufixos para designar profissões ligadas ao fazer manual — atividades práticas, artesanais ou de serviços cotidianos. Assim, os sufixos “-eiros” eram os que faziam, os que produziam, os que trabalhavam. Contudo, com o avanço da sociedade industrial e o surgimento de novas hierarquias sociais e profissionais, as ocupações manuais começaram a ser vistas como inferiores às intelectuais. A língua, espelho da sociedade, passou a reproduzir esse julgamento, transformando o sufixo “-eiro” em marcador de menor prestígio.
Assim como ocorre com o preconceito de classe, o racismo linguístico também se manifesta em expressões, sufixos e construções que, ao longo da história, foram moldadas por uma sociedade que hierarquizou pessoas segundo cor, origem e tipo de trabalho. A associação entre o sufixo “-eiro” e desvalorização não é apenas social, mas também racial: está enraizada em uma estrutura que inferiorizou os trabalhos manuais historicamente atribuídos a pessoas negras e indígenas.
Durante o período colonial e escravocrata, o trabalho manual era majoritariamente desempenhado por pessoas escravizadas ou libertas, e muitos dos ofícios nomeados com o final “-eiro” — carvoeiro, cozinheiro, lavadeiro, tropeiro, roceiro — eram exercidos por pessoas negras. Essa relação histórica produziu um vínculo simbólico entre o sufixo e o pertencimento racial, transformando o termo “-eiro” em marcador linguístico não apenas de classe, mas também de racialização do trabalho. Assim, a pejoratividade associada ao sufixo, reflete o modo como o racismo impregnou as formas de nomear e valorar os sujeitos. Quando a língua passa a considerar “-eiro” como sinônimo de “inferior”, “simples” ou “menos culto”, ela reproduz a lógica colonial que desumanizou os trabalhadores negros e desvalorizou suas práticas culturais e profissionais. Essa herança linguística, muitas vezes naturalizada, perpetua o que autores como Lélia Gonzalez (1988) e Abdias do Nascimento (1978) identificam como um racismo disfarçado na cultura brasileira — aquele que se manifesta de forma sutil, simbólica, e que é reproduzido pela linguagem cotidiana.
Além disso, expressões populares de tom pejorativo com o sufixo “-eiro” são frequentemente usadas para ridicularizar modos de falar e agir associados à cultura popular e afro-brasileira. O feiticeiro, o macumbeiro, o capoeirista — embora este último use outro sufixo — são exemplos de como a língua carrega julgamentos de valor, associando práticas de matriz africana à superstição ou à marginalidade. A pejoratividade do “-eiro” nessas palavras não é apenas gramatical: é ideológica e racializada, fruto de séculos de discriminação simbólica.
Em muitos contextos, o uso de “-eiro” para designar pessoas é acompanhado de certa ironia ou desprezo, especialmente quando comparado a denominações terminadas em “-ista” ou “-ólogo”. Enquanto o artista e o biólogo são associados à ciência ou à arte, o camioneiro e o garimpeiro são vistos, muitas vezes, por meio de estereótipos sociais. Essa diferença evidencia o modo como o preconceito linguístico se entrelaça ao preconceito social, naturalizando hierarquias simbólicas. A língua, nesse sentido, não é neutra: ela carrega e perpetua visões de mundo.
Exemplos dessa carga pejorativa são perceptíveis em expressões do cotidiano, como quando se diz, de forma desdenhosa, “esse sujeito é um politiqueiro” ou “um mexeriqueiro”. O sufixo ganha aqui o papel de intensificador negativo, sugerindo excesso, superficialidade ou falsidade. Enquanto o político pode ter prestígio, o politiqueiro é visto como alguém de má conduta; enquanto o crítico é respeitado, o critiqueiro é malvisto. A diferença morfológica traduz uma diferença social e moral, produzindo sentidos depreciativos pela simples escolha de um sufixo.
Esse fenômeno é um reflexo de nossa cultura linguística, que tende a associar determinados grupos sociais e profissionais a formas linguísticas menos prestigiadas. O “-eiro” torna-se, então, um marcador simbólico das classes populares, dos ofícios manuais, das práticas não acadêmicas. Essa percepção pejorativa não nasce da língua em si, surge incorporadas pelas estruturas de poder que organizam a sociedade. A linguagem, ao incorporar esses valores, reproduz e reforça o preconceito de classe e o elitismo linguístico.
O racismo linguístico não se expressa apenas em ofensas diretas, mas também em formas sutis de desvalorização lexical. Ela ecoa a mesma estrutura que colocou os corpos negros nas posições sociais menos valorizadas.
O que podemos fazer como, professores, pedagogos, é promover uma reflexão crítica sobre o uso de palavras é, enfim, resgatar a dignidade linguística e histórica dos sujeitos negros. Palavras como barqueiro, ferreiro e lavrador são testemunhos da contribuição negra para a formação econômica e cultural do Brasil. Revalorizá-las é um ato político e pedagógico, que transforma a língua em ferramenta de reparação simbólica e de promoção da igualdade racial. Nesse gesto, a linguística torna-se não apenas um campo de estudo, mas um instrumento de transformação social.
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