Publicado em: 23 de junho de 2025
1.
Precisamos falar a respeito da Funtelpa, a Fundação de Telecomunicações do Pará, e de suas emissoras, a TV Cultura e da Rádio Cultura. Precisamos falar sobre elas porque o Governo do Pará está, gradativamente, inviabilizando a sua existência. Precisamos falar sobre elas, também, porque seus funcionários estão discutindo com a população a necessidade de que o Governo aprove e encaminhe para a Assembleia Legislativa do Estado o seu Plano de Carreiras, Cargos e Remunerações (PCCR) – uma reivindicação que precisa ser escutada, e não apenas porque é justa, mas porque é necessária para o bem público, para que a Funtelpa possa continuar realizando a sua missão.
Precisamos falar sobre a Funtelpa, ainda, porque a sua inviabilização significa a interrupção de um processo de autorreflexividade que, desde a sua fundação, no ano de 1977, tem sido um dos vetores de afirmação, constituição e construção social de uma identidade paraense, de referência para a construção de uma autoestima e, para além disso, de um verdadeiro e importante circuito econômico, criativo, de trocas culturais e simbólicas – circuito esse que tem permitido a ativação de processos e cadeias produtivas que beneficiam artistas, produtores culturais, jornalistas, comunicadores em geral e intelectuais de todo o estado do Pará e de outros estados amazônicos.
Em síntese, precisamos falar sobre a Funtelpa porque ela tem sido uma fonte essencial, e mesmo um manancial, de produção de ontologias sobre a Amazônia – o que significa que a Funtelpa ativa afetos e vínculos sociais, reconstrói processos e vínculos históricos, geográficos e antropológicos, informa a realidade e torna a Amazônia um espaço mais compreensivo de si mesmo.
2.
Vou contar a vocês uma história que me chegou há alguns anos: a história de um mal-estar. Desde os albores do regime militar brasileiro, como parte da estratégia psicótica de “defender a integridade do território nacional” e de “integrar a Amazônia ao Brasil” – em termos mais precisos, espoliar, a Amazônia, ao interesse do capital sudestino – entrou em discussão a necessidade de ter-se, no país, uma rede de televisão centrada na região, mas completamente (isto é, política e ideologicamente) integrada ao centro nacional. Essa rede seria sediada em Belém, a única grande cidade amazônica que, a princípio, daria sustentação logística e comercial para o projeto.
Para instalá-la, a ideia era investir em uma empresa de comunicação local, por meio de concessões públicas e franqueamento de crédito, beneficiando-se de sua experiência profissional e técnica e que aderissem a esse “alinhamento” político-ideológico.
Porém, o regime militar não encontrou, em Belém, parceiros interessantes no campo da comunicação. Na segunda metade da década de 1960 havia sete grupos de comunicação sediados em Belém, todos eles com profundos vínculos com a política local: Os Diários Associados (jornal A Província do Pará, TV Marajoara, gerado da Rede Tupi e Rádio Marajoara AM), grupo nacional hostil ao regime militar e com forte autonomia no Pará; a Folha do Norte, jornal mais influente da região, vinculado às elites anti-baratistas (ou seja, ao campo político apoiador do ex-governador e interventor Joaquim de Magalhães Cardoso Barata), ainda que em crise sucessória, nesse período; Grupo Guajará (TV geradora da Rede Globo e Rádio AM, de mesmo nome), de propriedade do ex-prefeito de Belém Lopo de Castro, também associado às elites anti-baratistas; Grupo Estado do Pará (jornal de mesmo nome), de propriedade de Afonso Justo Chermont, igualmente um grupo anti-baratista; Grupo Difusora, de propriedade do ex-governador Moura Carvalho, apoiador das elites baratistas; Grupo O Liberal, igualmente apoiador do campo baratista, que passou a ser controlado pelo comerciante R. Maiorana em 1966 e que acabaria adquirindo A Folha do Norte e a Rádio Difusora; a Rádio Clube do Pará, emissora AM mais antiga e influente, com ampla penetração na região, de caráter mais profissional e, talvez por isso, sem projeto de crescimento midiático concreto.
O problema era que todos esses grupos, de alguma maneira, tinham projetos próprios, fossem eles políticos ou comerciais, além de visões de mundo profundamente enraizadas à experiência social paraense – muito distante da idealização de uma Amazônia integrada ao Brasil, motus loquandi do discurso político do regime militar.
E o que aconteceu? Bem…
3.
…por todas essas razões, a Ditadura decidiu sediar sua idealizada Rede Amazônica em Manaus, uma cidade então bem menor que Belém, com apenas um grupo de comunicação significativo – a TV Ajuricaba. Para tanto, escolheu uma pequena agência de publicidade, a Amazonas Publicidade Ltda, para contemplá-la como as múltiplas benesses do sistema. Em poucos anos essa pequena empresa, que até então ocupava duas salas, no centro de Manaus, ganhou concessões de televisão e de rádio em todas as capitais amazônicas (Manaus, Rio Branco, Porto Velho, Macapá e Boa Vista) – com exceção de Belém – tornando-se uma empresa dinâmica e de imensa qualidade técnica e profissional, a Rede Amazônica de Televisão.
Evidentemente que, quando a história é narrada sob a perspectiva da empresa, esse favorecimento tende a ser dissimulado por meio da narrativa sobre a capacidade empreendedora e administrativa, mas vamos aos fatos: tratava-se de um projeto de integração nacional (podemos dizer, ajuste colonial) e de uma política de beneficiamento de agentes da iniciativa privada que se adequassem à maneira como o regime militar pensava a Amazônia.
Era uma estratégia bastante coerente, pois o Governo Federal dispensava a confusão política das complicadas e intempestivas elites paraenses e de suas idealizações sobre o que era a Amazônia, e fundava uma empresa aberta à sua própria visão do que seria uma Amazônia integrada (colonizada pelo) ao Brasil – uma Amazônia descomplicada e livre dos processos coloniais e históricos de uma maneira geral, uma “nova Amazônia”, onde as forças narrativas do ícone – caras aos que desejavam um discurso exógeno sobre a reguão – pudessem prevalecer sobre as recorrentes disputas dos processos simbólicos inerentes à própria Amazônia.
Sediar uma rede de comunicação em Belém não permitiria a padronização e a pacificação dos discursos sobre a Amazônia, como desejava a elite brasileira. Ao contrário, abriria espaço para a confusão, a dúvida, o conflito e, sobretudo, para uma batalha narrativa sobre o que é — e sobre quem pode dizer — a Amazônia. A disputa interna, presente nos meios de comunicação paraenses, não apenas resistia ao ideal de unidade imposto pelo regime militar colonizador, como revelava que a Amazônia não podia ser contada de fora: sua verdade emergia das experiências endógenas, dos saberes locais, das vozes que falam a partir do território. Nesse sentido, perguntar o que é a Amazônia era também perguntar onde começa — e onde falha — a ideia de Brasil.”
Tanto Belém como Manaus são frutos de suas autonarrativas, e é natural de que suas dinâmicas midiáticas reproduzam as contradições de seus processos históricos e de suas autorreflexividades. Mas isso é uma história para outras das minhas ontologias…
Por hora, voltemos ao mal estar antes referido…
4.
Lembram que falei, acima, a respeito dele – desse mal estar – não é?
Bem, esse mal estar foi sentido nos meios intelectuais e políticos de Belém, muitos dos quais sentiram-se preteridos e desprestigiados com as decisões midiáticas do Governo Federal. Isso se deveu, evidentemente, do que interessava, ao regime militar, não era falar sobre a Amazônia a partir de uma perspectiva local, a partir de sua experiência, mas sim de uma Amazônia projetada – por um novo regime de colonização – para um dado futuro.
(ah, e, evidentemente, se poderia questionar a real capacidade desses meios intelectuais e políticos das elites locais belemenses falarem sobre a Amazônia a partir da experiência social das populações amazônicas… O máximo, o máximo mesmo, que conseguiriam, tal como o máximo que sempre conseguiriam, seria, e foi, falar sobre a Amazônia a partir de uma experiência social dos campos sociais dominantes do processo de colonialidade – mas isso também é tema para uma outra das minhas ontologias…)
Pois bem. Algumas pessoas de Belém não dormiram tranquilas, durante meses, diante desse processo. Refiro-me, aqui – para ser bem claro – a pessoas que apoiaram ou pretenderam apoiar o regime militar, no seu ethos e/ou no seu jogo social. Não obstante, eram, também, pessoas que tinham um compromisso com o Pará e que, intelectuais como eram, produziam ontologias sobre o que era a Amazônia. Posso citar, dentre outros, Clóvis Morais Rego, José Maria Barbosa, Olavo de Lyra Maia, Ernesto Horácio Cruz, Acyr Castro, Leandro Tocantins, Orlando Bittar, Aláudio Melo, Ernesto Bandeira Coêlho, Daniel Coelho de Souza, Maurício Coelho de Souza, José Rodrigues da Silveira Neto, Otávio Mendonça. Para eles era imperativo que a Amazônia pudesse ser contada, também, a partir de Belém. E essa ideia nada tinha a ver com o regime em vigor, pois se tratava de um sentimento partilhado com todo o campo progressista do estado do Pará, bem mais extenso, inclusive. Refiro esses nomes porque se tratavam de intelectuais públicos e, no contexto, influentes na gestão do Estado.
Vamos direto ao ponto: foi desse sentimento que surgiu, pelo que percebo, a vontade de criar uma emissora pública, em Belém, para dizer sobre a Amazônia.
A Funtelpa foi criada, com essa perspectiva e com esse significado, em 1977. Era governador do estado Aloysio da Costa Chaves. Era seu secretário de cultura – e agente fundamental do processo de sua invenção, o dr. Olavo de Lyra Maia, um dos que me contaram toda essa história, precisamente no ano de 1995, quando ocupei a função de diretor de Políticas Culturais, na Secretaria de Estado da Cultura e tive a honra de receber Lyra Maia, quase diariamente, para conversar, em torno de um café com beiju.
Importante dizer quem ele era: Lyra Maia nasceu em 1929, em Pernambuco, e foi criado no Pará. Estudando no Rio de Janeiro, envolveu-se na política, e, com atenção especial para a política cultural, participou da organização do Museu Imperial, da criação da Embratur e, igualmente, da Funarte. Apoiador do regime militar, retornou ao Pará para fundar a Secretaria de Estado da Cultura, Desportos e Turismo, tendo sido seu primeiro secretário, no governo Alacid Nunes. Permaneceu no cargo nos governos Fernando Guilhon e Aluízio Chaves.
Foi o idealizador e o criador da Companhia Paraense de Turismo (Paratur), do Teatro Waldemar Henrique, do Centur e, ainda, fez importantes obras de restauração no Theatro da Paz, em várias igrejas do estado e no Palacete Bolonha. Ah, e também foi o idealizador do Mangueirão e o construtor da primeira metade desse estádio.
Sim, e, ainda, um dos idealizadores da Funtelpa.
O projeto da Funtelpa, na verdade, só foi implementado durante o primeiro governo Jáder Barbalho (1983-87). As rádios Cultura (FM e OT) entraram em operação em 1985 e a TV em 1987. Pelo que percebemos, o ex-governador Jáder Barbalho compreendia a Funtelpa como um projeto estratégico, uma marca de seu governo. Certa vez, em 2008, quando eu próprio ocupava o cargo de Secretário de Estado de Comunicação, tive oportunidade de conversar com o ex-governador sobre esse processo e desse diálogo depreendi que, para ele, cultura e comunicação são armas do primeiro plano da articulação narrativa do Estado.
5.
A Funtelpa surgiu de uma ontologia tipicamente belemense: da dinâmica narrativa e da vontade de narrar a Amazônia a partir de uma perspectiva comprometida com a experiência social endógena das populações amazônicas – nisto considerando, inclusive, todas as limitações de concretização desse projeto, inclusive a da impossibilidade de que a forma social da comunicação midiática compreenda, realmente, o que é a experiência social amazônica.
O sentido de “cultura amazônica” ganha, na narrativa da Funtelpa, uma dimensão peculiar. Embora esse sentido seja enunciado, muitas vezes, como cultura paraense, a fundação tem o compromisso, na verdade, de discutir a experiência formativa, econômico-social, da Amazônia com um todo.
A atuação da Funtelpa pode ser compreendida como um compromisso com a enunciação de uma certa ontologia amazônica — no sentido de uma narrativa de mundo que busca dar sentido à existência e à experiência social dos povos da Amazônia, especialmente do estado do Pará.
Essa ontologia não se constrói apenas como discurso informativo, mas como produção simbólica, que articula modos de ser, de sentir, de conhecer e de narrar o território amazônico a partir de um lugar próprio. Por isso mesmo a Funtelpa, enquanto estrutura pública de comunicação, foge das lógicas hegemônicas de representação midiática do Norte do Brasil — frequentemente exótico, marginal ou periférico — e propõe um modelo de produção e difusão que valoriza a experiência endógena da região.
Mais do que isso, a Funtelpa produz coesão social. As ontologias enunciadas e, sobretudo, midiatizadas, produzem coesão social, sociação, socialidade, sociabilidade. O Pará e a Amazônia, como um todo, não seriam o que são hoje, se não fosse pela atuação da Funtelpa, essa verdadeira rede amazônica de comunicação, emissora única – porque pública – a produzir tanto conteúdo e de tão grande qualidade.
A comunicação pública praticada pela Funtelpa evidencia que a cultura amazônica é indissociável dos territórios onde ela se constitui. Isso significa que a cultura não pode ser compreendida fora das condições geográficas, históricas, ambientais e sociais que estruturam a vida na Amazônia. Os modos de habitar o rio, de celebrar os ciclos naturais, de praticar a oralidade, de trabalhar com a terra e com a floresta, de construir redes de solidariedade e resistência, são expressões de uma cultura que é, ao mesmo tempo, vivência e geopolítica.
A Funtelpa, afinal, é a rede de comunicação da Amazônia que, mais do que qualquer outra, tem a competência para narrar a Amazônia a partir dela mesma. A única rede de comunicação da Amazônia que tem, no seu ethos, a proposição de não “pacificar” a experiência endógena para que ela se adeque melhor às expetativas exógenas, às perspectivas de vieses colonialistas e predatórios – como, de resto, faz a mídia comercial em geral.
Além disso, é preciso perceber que a ação da Funtelpa ativou, ao longo da sua história, circuitos econômicos, circuitos estéticos e circuitos éticos. A Funtelpa foi decisiva para fazer o Pará e a Amazônia o que são, hoje, em termos de reconhecimento, trocas, circulação de ideias, turismo, cultura e, sobretudo, identidade.
6.
Por essas razões – e por outras, a vir – precisamos falar sobre a Funtelpa, a TV Cultura e a Rádio Cultura.
A reivindicação do seu corpo técnico e profissional por um Plano de Carreiras, Cargos e Remunerações (PCCR) – uma reivindicação que precisa ser escutada, é fundamental para o fortalecimento da diversidade artística e cultural na Amazônia brasileira. É fundamental, também, para a economia da cultura da Amazônia.
É inconcebível que cerca de 60% dos seus funcionários recebam uma remuneração salarial abaixo do salário base da categoria. Inconcebível e vergonhoso! Esses profissionais, radialistas e jornalistas, fazem muito pela Amazônia, e há muitos anos.
Aliás, é inconcebível, e mesmo incompreensível, como o governo Hélder Barbalho vem trabalhando para desvalorizar e desmontar a Funtelpa (também a Cultura e a Educação, políticas públicas que produzem a coesão social, no estado do Pará). Ainda mais incrível porque se trata de uma emissora e de uma política pública que constituíram-se como uma das grandes marcas do governo de seu próprio pai, o hoje senador Jáder Barbalho.
Prejudicar a Funtelpa e suas emissoras, planejar seu sufocamento e sua eventual extinção é um dos maiores erros que o governo do Pará pode cometer – na sua história, como Estado. Poucas instituições e políticas públicas fizeram tanto pelo Pará.
A poucas, tanto devemos agradecer.
Todos devem lembrar do projeto de lei 701/2024, por meio do qual o governador Hélder Barbalho propôs, ano passado, a extinção da Funtelpa. O governador voltou atrás e até falou, publicamente, que deseja uma “Funtelpa forte”, mas ainda não entendeu-se o que isso significa, exatamente. E isso é bem estranho quando consideramos, como coloquei acima, que foi o pai do atual governador, quando foi governador do Pará, o gestor que se esforçou para a constituição de políticas de cultura e de comunicação.
Olhem, não sei se estamos tratando, aqui, de um caso edipiano… No mito de Édipo, matar o pai (ou seja, matar as políticas e instituições criadas pelo pai), ou seja, matar simbolicamente o pai, não é apenas um ato de violência. É um gesto trágico de substituição do destino pelo desejo…
Bom, aqui entramos em outras ontologias. Acho que vou continuar falando das tendências edipianas do governador Hélder B para tentar entender a maneira como ele procura destruir as estruturas e narrativas grandemente cuidadas por seu pai, notadamente nos campos da comunicação e da cultura. Mas isso em outra crônica.
Por hora, quero dizer que algo está errado, e muito errado. Precisamos continuar falando sobre a Funtelpa porque falar sobre ela é falar sobre muitas coisas que precisam ser ditas em torno da maneira como o Pará pensa a Amazônia.
Apoiar a Funtelpa é urgente, porque a Funtelpa é um longo projeto de resistência da Amazônia contra as forças padronizadoras do Brasil. Defender a Funtelpa é vital, é um compromisso geracional de todos que desejam não apenas preservar, mas também ampliar, amplificar, a sua ação, a sua produção e a sua inteligência.
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